FOTOGRAFIA E POESIA

Francisco Weyl










Dum grande poeta deu-se o nome
a uma rua suburbana
nem tanto quis em vida
das “solidões lacustres”
que seu facho ainda alumia
dos nítidos e urbanos
dias ermos
escreveu e morreu
um dia
trocou o amor já anunciado das mulheres
e o tráfico das emoções nos espetáculos
pela paz indissolúvel
os demais resistiram
estão em bronze nas sessões camarárias
nos jardins de infância
nos largos das cidades marítimas
a ele deu-se uma rua suburbana
nem tanto era preciso
sua lisa fronte maldita
não se cobre da pátina das inscrições no mármore
de regresso à casa
com a lua mortiça ponderável nas nucas
fulge limpidamente
nas memórias mais graves
dos melhores de nós.





A imagem do poeta Sebastião Alba


  É minha intenção analisar uma fotografia que eu próprio obtive no ano de 1998, na cidade de Braga, Portugal, mais exatamente no depósito localizado aos fundos de um abrigo de idosos, aonde àquela altura habitava o poeta lusíada Sebastião Alba. Eu capturei esta imagem porque estava a fazer um documentário sobre o poeta fotografado.

 

  Esta foto a qual me refiro, eu a capturei à cor, mas revelei-a à preto e branco e com o negativo invertido - e o fiz por mera experimentação, já que mal acabara de me matricular no curso de cinema, no âmbito do qual eu estudaria um ano de fotografia, pelo que, portanto, estava demasiado empolgado com a possibilidade de manipular imagens.

 

  Há portanto, entre eu e esta imagem uma relação afetiva, primeiro porque naquele sagrado dia eu conheceria o poeta ao qual eu me dedicara procurar e segundo pelo prazer de tê-la captado.

 

  Esta e outras imagens tem um sentido histórico e foram usadas pela família do poeta em uma obra póstuma. São as últimas fotografias obtidas em vida do poeta, que veio a falecer dois anos mais tarde (14 de outubro de 2000).

 

  Esta fotografia compõe o projeto “Um poeta não se pega”, aforismo do próprio Alba com o qual eu batizei um filme documental que narra por assim dizer aquele nosso encontro, a partir do qual tornamo-nos amigos e eu um de seus leitores e porque não dizer discípulo. Depois que conheci Alba jamais parei de ler suas obras e de pesquisar sobre seu trajeto existencial e literário, tendo me tornado voluntariamente um dos maiores divulgadores de sua poesia. E é esta sua imagem que eu carrego comigo, esta mesma imagem sobre a qual muitas vezes me debrucei e chorei.

 

  Portanto, há entre eu e esta imagem uma espécie de cordão umbilical que nos interliga de tal forma que mais que seu autor, eu me sinto também objeto fora de campo daquela paisagem ali representada, pelo que, assumo, torna-se ousado analisá-la sem incorrer numa extrema necessidade de fazer digressões de naturezas poéticas e filosóficas que talvez nem venham a ser o fim em si desta análise.

 

  Mas, o que é afinal de contas uma análise de uma imagem se não uma arqueologia, um dissecar de camadas supostamente fossilizadas no interior de um espaço-objeto? E, mais que isso, uma escavação de elementos que na verdade não estão postos e nem podem ser observados nesta mesma imagem? Porque a imagem, sabemos, é um signo e como tal, remete-nos a um lugar que não ele próprio. Sendo temporal, a imagem atravessa o tempo. E, sendo real, ela o transcende. Porque uma imagem fotográfica mais nos traduz os elementos que estão fora de seu quadro do que sobre os elementos a ela imanentes.

 

  Atrevo-me a entrar neste lado de fora desta imagem, trazendo-a para o meu lado de dentro, de onde na verdade ela jamais saiu. É emblemático imaginar o poeta Alba sair daquele espaço, com o corpo meio curvado, as mãos inchadas e trêmulas, os olhos remelentos, a barba há muito por fazer, as vestes rotas. Há anos que esta imagem assim fixada me invade os sonhos e me coloca diante de uma realidade que é e sempre será poética. 

 

Filosofia e fotografia


  A filosofia pode dissecar um corpo como faz o legista com um cadáver: estudar o corpo para identificar a causa mortis. A filosofia faz um estudo ao nível da estrutura linguística de uma imagem, tal qual, por exemplo, fez Deleuze em "Imagem Tempo - Imagem Movimento": como interprete, não se interessou pela exterioridade narrativa nem mesmo pela dicotomia forma/conteúdo fílmicos, mas sim pelo que está subjacente ao fotograma, pela interioridade da imagem. Deleuze reconheceu o cinema como imagem e não como narrativa, até porque, sabemos, uma sucessão de imagens não corresponde necessariamente a uma narrativa.

 

  Pode-se aplicar, portanto, a filosofia ao que quer que seja - na vida, até mesmo à arte fotográfica. Entretanto, analisar filosoficamente uma imagem pressupõe a apresentação de pensamentos filosóficos que elevem à imagem para além de sua qualidade, ou seja, não podemos enquadrar os argumentos filosóficos às imagens às quais tencionamos analisar, o que seria submeter o nosso pensamento a um objeto.

 

  Se um fotógrafo anuncia a sua pretensão filosofal através de sua obra, é preciso escavar as profundezas de sua matéria prima, é preciso ver as camadas fossilizadas de sua arte ou de sua poesia. Esta é a condição para que nasça então uma fotografia poética e filosófica.

 

  Um dia, olhamos para as fotografias dependuradas na parede da casa e já não gostamos de qualquer coisa nelas. Súbito, alteramos as suas posições. Mais tarde, desistimos e, então, a sala de estar parece precisar ter a sua mobília trocada. Irrequietos, um dia, modificamos a casa por completo, transformando-a, inclusive, em toda a sua estrutura. Finalmente, decidimo-nos por sair de casa. E mudamos como as aves solitárias, a carregar atrás de nos o fantasma do que fomos e a sombra do que seremos neste mundo dos mortos.

 

  Ao poeta, esta consciência é original, nasce da sua entrega a um sentimento poético de absoluto transe. É sob esta embriaguez primária (de que o homem é qualquer coisa feita de finitude) que emerge o autoconhecimento, diluído na coisa sentida.

 

  O sentir em Alba só é sentido porque tem o sentido mais sentido de ser sentido em si próprio. Com este sentir o poeta não sofre mais o sofrer porque já é o sofrer em todo o seu esplendor, que é a sua decadência. E todo este sofrer decadente transforma-se em um sentimento nobre, mas, confrontado com o presente do extasiar-se e o passado do esquecer-se, é efêmero, pequeno, como todo sentimento sentido. É no abandono que o poeta conquista a sua grandeza. Não há aqui nem vitória nem vencidos.

 

  A imagem fotográfica central desta análise como se vê é simples e não tem muitos elementos além da própria figura humana, no caso o poeta Alba. Além de suas vestes, podemos ver os óculos e um maço de cigarros que ele carrega às mãos. O enquadramento por pouco não se configura num plano cinematográfico (americano) e nele vê-se o poeta com os olhos dispersos, mas em direção ao chão, o que denota um pouco o seu ar cabisbaixo, cansado que estava de uma noite mal dormida por causa das constantes tosses que lhe incomodavam até mesmo a respiração.

 

  Entretanto, o poeta que vemos – decadente – nesta imagem não é nem nunca será o poeta que conhecemos naquele santo dia. Há entre o Alba fotografado e o Alba não captado todo um universo filosofal e poético que precisa ser redescoberto e é a isso que nos propomos com estas reflexões que passaremos a fazer a partir de agora.

 

  Mas não poderei analisar esta fotografia sem antes sentir nela a presença do anjo da morte. Este mestre poeta, com a sua visão de morte, torna mais santas as cosias da vida. Toda a sua vida, toda a sua obra, são um canto para a morte. Esta morte de Alba tão presente é essencialmente poética. O poeta nos toca e nos eleva a tudo que é vivo e verdadeiramente sentido. Toca-nos em nossa loucura, portando-nos aos nossos vales interiores, fazendo-nos cobrir a vida com uma sensação de abandono do corpo, a matéria, de sua razão e ideias. 

 

Poiesis imagética


 A primeira questão que eu me coloco diante de uma imagem é que ela não diz aquilo ao qual ela representa, ela é, ainda que não o seja.

 

 A imagem representa o real, sendo também (imaginada por) este real, entretanto, ela não é o real, mas uma projeção a partir da qual o real deixa de ser real – paradoxalmente – escapa a zona de sombras para se tornar imagem.

 

 Uma imagem, portanto, é uma alegoria.

 

 Toda imagem é apenas uma imagem ainda que imaginada, impressa ou projetada.

 

 A imagem é pois o corpo do objeto ao qual ela só não o nomeia porque a sua grafia é luz. E sombra.

 

 Então, ela (a imagem) é tanto opaca quanto transparente.

 

 Pode ser unidimensional, bidimensional, tridimensional ou polidimensional.

 

 É uma imagem, apenas.

 

 Mas a imagem, ela é como a poesia (e não só, já que – objetada, ela pode vir a ser arte).

 

 A imagem é ambígua e polisignica.

 

 Uma imagem pensada não tem forma embora o pensamento pense (e imagine em) imagens.

 

 Uma imagem pensada não tem forma, é só ideia de imagem. Neste construto, tal qual o mito da caverna, a imagem pode se deslocar.

 

 A imagem é nesse sentido o poço escuro do desenho, da pintura, da fotografia, do cinema, da literatura e das artes performáticas e cenográficas.

 

 A imagem dança para além das cavernas. Constrói movimentos ora num ritmo lento ora num ritmo acelerado. Mas a imagem também e fixa, como a fotografia. E ilide, como a magia e o cinema.

 

 A imagem fixa é paranoica. E só pode ser pensada no âmbito desta patologia. Porque ela é mutável aos olhos e á mente de quem a vê e a percepciona. Caso contrário, seria outra coisa que não imagem.

 

 A imagem, apesar de ser um fenômeno apriorístico em relação à imaginação, é na imaginação que ela se fixa e se desloca, realizando-se para além do infinito espectro visível.

 

 É para além deste espectro que ela se resignifica.

 

 Dentro desta dimensão, pensar as imagens é como pensar as estrelas. Elas já não estão mais lá no lugar onde pensamos vê-las.

 

 Uma vez iluminado este campo por assim dizer poético, considero que as imagens são indiferenciadas umas das outras como um universo que se plasma a si próprio.

 

 Essa é a condição de igualdade e ao mesmo tempo a grandeza do infinito universo de imagens.

 

 Tal qual pixels a matrix ora de compõe ora se decompõe. Puzzle. Fragmento. Interface. Interimagem.

 

 Mas, contraditória, uma imagem não é apenas uma imagem em si. Ela se compõe, na sua gestalt, de um complexo conjunto de imagens que lhe formatam, conforme o sistema lógico e o repertório imagético de quem a projeta para dentro da própria mente.

 

 E a mente (ou a imaginação) é caverna. E a luz está do lado de fora. E é fora do humano que reside a realidade. O real é a anti-imagem. O real, ao contrário, desmitifica a imagem da caverna cerebral dentro da qual a imagem fora projetada. O real, nesse sentido, reconstrói e resignifica a imagem.

 

 A imagem, como a língua e a serpente, ela rasteja e é traiçoeira. O real está para a imagem assim como a imagem está para a imaginação.

 

 Além da imaginação ou aquém do real, a imagem adquire o seu estatuto na estrutura humana formal.

 

 O pensamento, a palavra, o objeto, a arte – em simultâneo – conferem a imagem o seu tempo e o seu espaço.

 

 E a imagem ainda que minimal, agiganta-se.

 

 Ainda que fixada, ela se projeta. E mesmo projetada, fixa-se. Imóvel, move-se.

 

 A imagem não tem corpo mas é corporificada.

 

 E mesmo não pensada, ela é. 

 

Fotografia e poesia


  Independentemente de suas manipulações laboratoriais, simples ou complexas, realizadas posteriormente ao ato fotográfico, que é exatamente aquele momento em que o fotógrafo dispara a câmara para obter um registro de uma determinada imagem, a fotografia fixa em papel a imagem que se eterniza e se dissipa com o tempo.

 

  Imaginemos: um fotograma de um filme colorido revelado à preto e branco, ou seja, imaginemos um fotograma original com uma imagem à cor, mas cuja revelação é processada à preto e branco.

 

  Imaginemos que este fotograma colorido revelado à preto e branco foi colocado no ampliador de forma, propositadamente, invertida, ou seja, na imagem original um homem caminha para um lado e na imagem revelada este homem está a caminhar para o lado oposto.

 

  Qualquer fotografia é, em si, uma reprodução diferenciada e invertida de uma realidade ainda mais diferenciada e invertida, mas esta fotografia que vos peço que imaginem é um espelho poético de um homem que se chamava Diniz Albano Gonçalves.

 

  Este homem era um poeta que, quando escrevia versos, assinava-os com o pseudônimo de Sebastião Alba. Entretanto nenhum desses dois poetas, este captado pela foto a caminhar em uma direção e este que, revelado, caminha em direção contrária, poderá ser olhado em essência ou realidade, apenas em aparência e representação.

 

  Os dois a caminhar para lados opostos são um só poeta, que agora está morto, mas que, representado pela fotografia, eterniza-se, em aparência. E mesmo que o poeta ainda estivesse vivo, com o seu corpo, já que seu espírito permanece entre nós com a sua obra, uma imagem fotográfica seria incapaz de permitir que o víssemos em essência, pois a fotografia é uma ilusão da realidade.

 

  Antes de analisar a relação entre as “duas” fotografias, a obtida a cores e a revelada de forma invertida, à preto e branco, antes de responder o que é que uma fotografia tem a ver com a outra eu pergunto: o que é que a fotografia tem a ver com a vida?

 

  Se a fotografia for uma arte no sentido da arte definida por Friedrich Nietzsche, ela será a própria afirmação da vida, mas, se ela for objeto de estudo nas mãos dos críticos cuja interpretação é pura lógica e racionalidade científica, então, ela será só o reflexo e o decalque de uma imagem que em si já é aparência, uma imagem falsa de uma imagem ainda mais falsa.

 

  As reproduções de um mesmo fotograma, um à cor, a obedecer ao registro original, e outro à preto e branco, com o negativo invertido, não são reproduções de nenhuma representação ou aparência. O poeta Sebastião Alba agora já está morto, mas não a sua poesia, porque, quando criava, ele sentia a poesia que não lhe pertencia, sendo ele a pertencer à poesia que se lhe criava.

 

  Impressa em papéis fotográficos, qualquer imagem é mais morta que os mortos. A fotografia, sabemos disso a partir de leituras de Walter Benjamin e Susan Sontag, apenas representa a coisa representada, ou seja, representa a vida que se representa para a fotografia. Mas a imagem desse poeta morto, entretanto, não poderá mais representar coisa alguma, apenas evocar um momento em que a fotógrafo disparou sua máquina e registrou um átimo de vida deste poeta.

 

 A fotografia tema desta análise foi obtida no primeiro dia em que o fotógrafo conheceu o poeta e com o mesmo espírito nietzschiano que envolve qualquer produção verdadeiramente artística. O fotógrafo como autor, não da arte, mas de algo que dá origem à arte, segundo Susan Sontag, cria uma relação com o mundo de forma distanciada e ambígua, ora de assédio, ora de submissão. Quando desvenda a realidade oculta, cria um eu individualizado e manipulável através de sua antologia visual. E como há rasgo de esquecimentos na memória seletiva, o ato de fotografar somente pode ser recordado e registrado nessas condições.

 

  Walter Benjamin ensinou que se retrata para ressaltar o valor de exposição da obra e, simultaneamente, destruir-lhe o seu valor de culto. Arrisco afirmar que o ser não cria coisas, estas é que se fazem à sua revelia, técnicas apenas servem ao artista durante o processo de construção de sua obra, necessariamente inconclusa, ou, no dizer de Humberto Eco, aberta.

 

  O fotógrafo, portanto, não tem que saber a fotografia que faz, ele tem que senti-la, mas não necessariamente com o poder de saber o que está enquadrado pela câmara. Só assim ele tornará a fotografia em poesia, e a exemplo da poesia, a fotografia não se escreve na grafia mecânica do papel e/ou da máquina.

 

  O fotógrafo tem que saber a fotografia que faz mas não como aquele que controla a sua vida, não com perfeição técnica, pois a perfeição é um mito apolíneo que despreza a natureza das coisas e a técnica é um monstro que se criou no entulho da cultura, enquanto a fotografia mora no ato solitário de fotografar, na coragem de instrumentalizar a arte para o não explicável.

 

  Imaginemos: se um fotógrafo utilizar a sua câmera e apontá-la aleatoriamente para qualquer direção e dispará-la, ele não saberá se a câmera estará no manual ou no automático, não saberá o nível de abertura do diafragma, não saberá o que está enquadrado pela câmera, e isso não poderá lhe fazer a menor diferença, porque ele estará entregue à fotografia, sem sabê-la, mas sentindo-a, sabendo-a na mesma porque não a viverá. Fotografia é poesia e por isso é arte, é o que não existe e o que não existe não é para ser vivido.

 

  Quando Sebastião Alba escrevia poemas, ele não vivia o seu poema, fazia-o, é como a fotografia ao acaso, na sua força e na sua coragem: depois do poema escrito ou da fotografia realizada, pode-se ir ao laboratório e usar papéis, tempo de exposição à luz, ou no caso do poema, retirar verbos, alterar expressões, reduzi-lo a concepções de unidade linguística, mas então nem o poema será mais poema e nem a fotografia será mais fotografia, porque aquele instante único já será passado, o que quer dizer que não se pode prendê-lo ou eterniza-lo com o saber ou com uma imagem, apenas senti-lo, vivê-lo.

 

  É o poema que se escreve a si próprio e é a fotografia que se revela a si mesma. Aceitando esta natureza, saber sem saber, o poema e a fotografia se manifestarão naturalmente. Talvez assim sejamos capazes de sentir sem saber a vida que vivemos. 

 

Conclusão transcendental


  Um dia esta fotografia aqui analisada revelou uma história e eu fiquei a olhar para aquela imagem como se o tempo nem tivesse passado e jamais o teve porque ele sempre se faz presente mesmo agora na memória que só é real porque evoca o que não mais existe. E fico nesta penumbra inconsciente destas imagens que me dizem o que eu fui sem que eu o seja.

 

  Porque a felicidade como tudo que existe ela é só uma ideia e vez em quando sensações que se desprendem do tempo para que nos fixemos numa solidão que sempre nos enclausura. Assim o universo se constrói, com estes símbolos – como se fantasmas descessem pelas fissuras do cérebro e tomassem estradas de vasos sanguíneos com uma velocidade alucinante e tudo se fixasse pulsando, pulsando, pulsando.

 

  E jorrasse para além de nossos pensamentos aqueles que nem mais somos.

 

  Um dia estas imagens nos socorrem das tristezas que nos fazem deitar lágrimas e poesias existenciais e as retemos por alguns instantes incronometráveis e depois narramos com o silêncio toda uma angústia que atormenta nossa finitude.

 

  Meu corpo e meu pão, meu vinho e minha alma, minha carne, meu alimento e minha embriaguez, agora evocados tornam-me lúcido e assim me vejo já ausente desta fotografia que um dia haverei de rever e sempre e sempre e outra vez a revisitarei.

 

  Aquele depósito nos fundos de um abrigo de idosos ainda existe mas nele já não habita o poeta. E as demais fotos daquele encontro? Não mais fotos, mais que fotos, lembranças, mais que lembranças, o tempo, o tempo, o tempo. Como um sonho, a foto desaparece, porque na verdade talvez o poeta nunca tenha ali estado. Com o tempo, a imagem se apaga. Com o tempo desaparecemos um a um. Então a foto ficará vazia e o universo enfim prenhe de nossas almas. 

 

Um poeta não se pega


Há treze anos (Dia 14 de Outubro de 2001) morria o poeta luso-moçambicano Sebastião Alba.

 

Conheci Alba dois anos antes disso, na cidade de Braga, em Portugal.

 

Desfrutei de momentos inesquecíveis, alguns dos quais inseridos no único documento audiovisual em vida com este poeta, que eu tive a humilde oportunidade de realizar.

 

Depois da morte de Alba, tornei-me uma espécie de missionário da sua obra, motivo pelo qual trago a luz este texto que lhe dediquei.

 

(…)

 

Diniz Gonçalves não gostava de falar de poesia. Sebastião Alba escrevia de vez em quando.

 

Diniz e Alba não tinham nome, mas ideias e coisas. Os dois eram entes do mesmo ser.

 

Diniz contava estrelas pelas frestas do barraco e Alba dormia entre móveis e jazentes.

 

Os fantasmas assombravam a noite de Diniz, Alba não assustava os dias da cidade.

 

Diz o popular, todos têm que nascer em algum lugar, e, eles, por um acaso, são flores semeadas em Portugal e brotadas nos jardins do mundo.

 

Diniz não tinha lá muito dinheiro e andava pelas ruas de Braga, a conversar com mendigos e prostitutas, sem dispensar o trago de um bom tinto maduro.

 

Alba nasceu e viveu nessa vida que os seres considerados normais se recusam a entender. Ele

 

extraía o pólen da poesia e grafava com o coto do lápis em papéis que recolhia e esquecia nas ruas.

 

Algumas das poesias de Alba tinham vida curta, mas a obra de Diniz está para além da eternidade. Diniz não era homem feito só de barro, havia nele outras naturezas e divindades.

 

Diniz plantou poesias e Alba escreveu árvores. Eles têm “A Noite Dividida”, em livro da Assírio& Alvim, graças ao poeta português Herberto Helder, que levou os originais ao editor Emílio Monteiro.

 

Seres de alma e coração maiores que o mundo, Diniz ou Alba nem tocaram no dinheiro que receberam da Editora.

 

A quantia foi repassada às duas filhas, que também receberam o Prêmio conferido à obra pela Câmara de Braga.

 

Eles não davam muito valor às coisas materiais nem costumavam falar em espírito. Eram o que eram, com seus questionamentos e simplicidades.

 

Diniz era um pouco franciscano, dava e recebia: uma camisa de um amigo, um agasalho de um outro, a sandália de um terceiro. É assim que sobrevivia aos invernos, dormindo ao relento, algumas vezes no átrio de uma capela, outras num quartinho, atrás de um abrigo de idosos.

 

Alba tinha a camisa rota como aquele verso do Pessoa: pois não tenho quem me cosa / uma camisa não é nada / e um rasgão não é mal.

 

O sorriso de Diniz era como o dos anjos pessoanos e Alba possuía o olhar poético das crianças.

 

Poeta que não se pega como os caçadores às borboletas, Alba transpirava, mas não se excitava com a poesia que criava, sobre a qual nada sabia e dizia “hei de morrer sem saber o que isso é, pá”.

 

Diniz levava junto o Albano Carneiro Gonçalves, fruto da genealogia familiar. Já Sebastião Alba fez-se nome em Diniz, para homenagear a mãe Sebastiana e ao pai Albano, este Professor e amante da história das ideias e das artes.

 

Sem o aprendizado de Diniz, Alba não saberia nada.

 

Diniz cresceu entre crianças de Mirandela e os clássicos de Eça de Queiroz, Sthendal, Jorge Amado, Beethoven, Paganini, Corsacof, Rimsk, Barovni.

 

Diniz não gostava de música americana. Sentava-se à mesa de um café e passava as tardes assobiando árias e bebendo o sumo da fertilidade de Schubbert.

 

Alba odiava as telenovelas brasileiras, mas adorava a poesia de Drummond e a música de Chico Buarque.

 

Possuído pelo vinho, rabiscava influências de um Kant, Nietzsche, Maupassant, Camus.

 

Diniz não era um borrasco nem Alba um dibson. Os dois juntos somavam um só. O senso de humor deles alegrava a natureza das coisas e fazia-nos viver melhor.

 

Diniz serviu ao Exército e se libertou das ideias da caserna de Skiner. Preso pelos militares portugueses por ter desertado, leu Che Guevara e concluiu que, ao seguir o rasto de Bolívar, o gajo tornou-se uma personagem saída de uma peça de Cervantes.

 

Diniz utilizou sua cultura a serviço do Governo de Moçambique, mas desistiu do socialismo, mas dizia acreditar em algumas razões do velho Marx. Entre elas, a máxima relativa à religião, e também ao futebol, que se tornaram um ópio para o povo.

 

Alba não tinha pátria nem patrão, mas não era anarquista. Pessoano, não queria ser nada, mas tinha dentro de si todos os sonhos do mundo.

 

Diniz Gonçalves começou a escrever poesias sem nenhuma razão especial, aos 21 anos.

 

Sebastião Alba não nasceu para contar cronologias, mas para transpassar os tempos.

 

Diniz é apelido e Alba pseudónimo.

 

Diniz perdeu os seus documentos, mas não a identidade de Alba.

 

Diniz comeu o que mendigou pelas ruas. Alba alimentava ao espírito com a poética dos dias.

 

Graças a Deus nos encontramos um dia, e nesse dia começamos a rodar “O Filme do Desassossego”, cujo nome modifiquei para “Dos Céus Coube-me Esta Porção na Gaiola”, versos do próprio Alba.

 

Mostrei-lhes muitos de meus poemas e ele uns quantos seus me leu, falamos de poesia, e, claro, bebemos e cantamos, como tinha de ser.

 

Depois, tivemos alguns desencontros, não conseguia encontrá-lo em Braga, nem mesmo no “Café Bem Estar”, onde ele costumava ficar.

 

Mais tarde vim a saber que o Sebastião Alba morreu atropelado. Atropelado pelos mortos que vivem a vagar neste mundo imundo.

 

Eu chorei o que tinha para chorar e, como bom Cristão, deixei os mortos enterrarem seus próprios mortos.

 

Diniz e Alba se misturaram na dialética da vida, esse rio que lava e leva nossos corpos mortos mas que deixa marcas de torturas para que todos saibam como somos. 

 


Fim de poema
© Sebastião Alba
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Para que nem tudo vos seja sonegado,
cultivai a surdina.
Eu fico em surdina.
Em surdina aparo
os utensílios,
em surdina me preparo
para morrer.
Amo, chut!, em surdina;
a minha vida,
nesga entre dois ponteiros, fecha-se
em surdina.



BIBLIOGRAFIA


  ALBA, Sebastião (1981) A Noite Dividida. Lisboa: Edições 70. 2001

 

  ALBA, Sebastião (1981) O Ritmo do Presságio. Lisboa: Edições 70. 2002

 

  ALBA, Sebastião (2003) Albas. S/l: Edições Quasi. 2003

 

  BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de J. Ginsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

 

  BUBBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Ed. Cortez & Moraes, 1979.

 

  _____. Do diálogo e do dialógico. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982.

 

  DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques e Nilza da Silva. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.

 

  FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Portugália Editora, 1967.