Pixadores, torcedores, bate-bolas e funkeiros: poéticas do enigma no reino da humanidade esclarecida.

Gustavo Coelho

Que é o ser do homem, e como pode ocorrer que esse ser, que se
poderia tão facilmente caracterizar pelo fato de que “ele tem
pensamento” e que talvez seja o único a possuí-lo, tenha uma relação
indelével e fundamental com o impensado? (FOUCAULT, 2007, p.448)



  Herdeiros, podemos dizer assim, da mentalidade resultante do desenvolvimento do espírito científico que deu ao ser humano individual, desde então iluminado, as bases filosóficas necessárias à crença chave para o desenrolar da modernidade, ou seja, a de que é ele, ou melhor, é a sua dimensão consciente, a autora primordial, a origem única daquilo que ele próprio diz, do que ele pensa e de que será tal ação dele sobre o mundo que, em última instância, libertará a humanidade dos antigos mistérios que assolaram os antigos, terminamos assim por viver o paradoxal engodo de uma prometida autonomia paroxística de nós mesmos, com a qual temos que conviver internamente, não sem muitas dificuldades. Em outras palavras, tão pretensa hipertrofia do “si mesmo” se, por um lado, permitiu todas as positividades da extroversão do conhecimento (impulso luneta e impulso microscópio), lançou as dimensões da introversão (impulso do riso ou do soco, por exemplo) a um nível de estranhamento tão arriscado que nos aproximou da suposição perigosa de que tratam-se de frivolidades descartáveis, ou seja, de que sua negligência não nos traria qualquer efeito nocivo, ou, pelo contrário, seria salutar ao avanço desse novo homem. Tamanha ignorância, acompanhando Nietzsche e apontando já uma das bases epistemológicas deste artigo, provavelmente não seria cometida pelos menos iluminados antigos que, assentados justamente na força da fragilidade de sua bamba consciência, sabiam (aqui o verbo só pode estar mesmo no plural, pois trata-se já do saber sedimentado no inconsciente coletivo) a importância de base que a gestão ritualizada de tais características humanas tinham na perduração dos seus elos, do todo, e, por que não, da espécie, como sinalizou à sua maneira Nietzsche em A Gaia Ciência (2006):


Talvez ainda haja um futuro para o riso! O que poderá muito bem ser verificado quando a humanidade tiver incorporado a máxima: “a espécie é tudo, o indivíduo não é nada”, e quando cada um dispuser, a cada momento, de um acesso a essa liberação derradeira, a essa derradeira irresponsabilidade. Talvez então o riso se tenha aliado à sabedoria, talvez então resulte em nada mais que a “gaia ciência”. (p. 38)


  Quando Nietzsche fala, então, nessa espécie de elo perdido entre o riso e a sabedoria, ajuda-me a intuir, mesmo que fugazmente, o cerne da questão que move este trabalho, ou seja, a tentativa de encontrar, por meio de pesquisa de campo em alguns cotidianos de práticas jovens e populares, pistas dessa indissociabilidade primal entre a sabedoria em sentido amplo e a involuntariedade dos gestos, incluindo aí também as falas que compõem algo como nosso patrimônio inconsciente, elemento preponderante na composição de nossa personalidade. Para entender tal movimento, estou partindo de uma premissa já também utilizada por diferentes autores de diversos campos que vão aparecer, ora ou outra, ainda neste trabalho – a ideia de que quando falamos e nos movemos, mesmo na mais mínima fala ou gesto, não temos o controle total e a posse completa da matriz geradora, sendo esta, portanto, composta em larga escala por um material que nos escapa e que muito provavelmente morreremos sem tomarmos consciência de sua maior parte. No entanto, como introduzi, para o ser humano moderno bem acabado, lidar com a possibilidade de que a maior parte de si esteja assentada sobre um mistério, indecifrável em sua totalidade, lhe jogaria numa angustia perigosa, afinal, a fonte para todo esclarecimento das coisas só poderia estar no único agente da empreitada explicativa do mundo – o “eu” –, e este, sob o risco de perder esse lugar central no universo, precisou embalsamar de verdade aquela que foi uma obra de elevado virtuosismo fantástico, a invenção da integridade humana. Pela primeira vez, o homem acreditava estar abandonado a uma versão muito reduzida de si mesmo e que fora tomada como o seu todo – a sua consciência. “Penso, logo existo” sintetizou bem esse processo.





  O trabalho que ora proponho, pelo contrário, procura a importância objetiva e concreta daquilo que antecede o “pensado”, ou sendo mais específico, interessa-se por o que escapa à dimensão voluntária e cognitiva da consciência, dimensão que corresponde a uma mínima parte de toda nossa atividade psíquica (hipótese largamente desenvolvida em Jung e que retomaremos mais adiante), mas que, como bem apontou Gumbrecht (2010), recebeu todas as fichas da aposta feita pela humanidade ocidentalizada no seu projeto solitário de emancipação de si por si, forjando, então, “uma entidade puramente intelectual, pois a única função explícita que se lhe atribui é observar o mundo, e para tal parecem ser suficientes faculdades exclusivamente cognitivas” (p. 46). É sobre os efeitos danosos, seja politicamente, eticamente ou esteticamente dessa incisão exclusivista na formatação de nossa mentalidade e, por que não, também de nossa corporeidade, que dedico meu trabalho. Em palavras mais metafóricas, desconfio de que tal processo não poderia se dar sem alguma inflamação que, naturalmente, aparecerá de diversas formas em nossos cotidianos, mas que diante das quais, justamente por termos à mão somente ferramentas de dissecação herdadas dessa ditadura da consciência, incorremos frequentemente no risco de não saber mais atribuir sentido ao que sempre o teve. Sendo mais rigoroso, reduzimos o conceito de sentido àquilo que podemos bem esclarecer, bem justificar, inventando o absurdo de achar que não há sentido no não-sentido, como sinalizou Castoriadis (2009):


… de onde vem este prazer, apesar de que efetivamente ele esteja sempre aí? Diria, da minha parte, que ele vem de certa maneira de experimentar o sentido. E este sentido, esta significação, nos grandes momentos da arte – e não faço jogo de palavras, não faço parisianismo, nem, aliás, hegelianismo –, é o sentido do não-sentido e o não-sentido do sentido. Releiam Ilíada, releiam qualquer tragédia grega, releiam Shakespeare, releiam Esplendores e misérias das cortesãs ou as Ilusões perdidas de Balzac. A educação sentimental ou a Recherche, Kafka ou Ulisses de Joyce, escutem novamente Tristão ou o Réquiem de Mozart, ou qualquer coisa de Bach: é o sentido do não-sentido e o não-sentido do sentido que aí experimentamos. Os quais condensam a arte como janela sobre o abismo, sobre o caos, e o dar forma a este abismo – está aí o momento do sentido, ou seja, a criação pela arte de um cosmos. (p. 117-118)


  Castoriadis, no trecho acima, lança mão de obras de arte amplamente reconhecidas para pensar esse elemento participante da gestação das criações humanas mas que não encontra origem no que temos de inteligível, ou seja, cuja existência não encontra justificativas nos limitados certames das boas razões, base na qual a modernidade julgou encontrar todos os seus impulsos. Em outras palavras, Castoriadis fala da fertilidade que há nesse abismo entre a poiésis e o inteligível, nessa zona obscura de onde parece emergir a enigmática concretude abstrata das belezas sem razão. Fala, portanto, da resposta que a modernidade não conseguiu responder: “por que a estética?”. Pois bem, a aposta que faço para avançar no trabalho aqui proposto é a de que, entre tais belezas, entendidas aqui como materializações sintetizadas dessa substância não capturável que constitui de maneira inexorável a condição humana, está não só o que se convencionou chamar de obra de arte, mas também todas as miudezas do nosso cotidiano. Uma espécie de trincheira popular, onde tal enigma da questão sem resposta não leva à angustia comum à subjetividade moderna, paranóica em encontrar na sua limitada gramática, a clara resposta para tudo. Uma trincheira, portanto, que mantém uma espécie de sabedoria arcaica, que “sabe muito bem”, que o vocabulário normativo disponível não lhe dá ferramentas suficientes para dizer tudo o que merece ser dito, e coloca, portanto, boa parte de suas energias na inconsciente tarefa de dar formas a tal disforme enigma. Para isso, no entanto, ao mesmo tempo que se estetiza formas de aparição do enigma, impede-se, de diversas maneiras também, que ele se petrifique em alguma forma definitiva. Em outras palavras, em contrapelo à lógica explicativa da subjetividade moderna, nessa trincheira, o enigma é regado dia a dia para que floresça permanecendo enquanto tal, já que é de sua viscosidade turva que depende a continuidade da poética da cultura, a despeito das vontades de “transparência” empreendidas pelas tentativas explicativas de aprisionamento.


  Ainda que, a partir desse pressuposto, a gente possa empreender pesquisas em diversos cotidianos a fim de levantar um inesgotável inventário de aparições mais ou menos eloquentes desse resistente enigma da significação estética da vida, escolhi uma rede de práticas culturais protagonizadas majoritariamente por jovens populares para alimentar com material empírico esse trabalho. Tal escolha se deu por entendê-las enquanto reservatório contemporâneo repleto de obragens estéticas, de pistas, de gestos, de relatos, de ritualizações, radicalmente desafiantes à nossa máquina gramatical moderna que ergue impedimentos a leituras de mundo para além de suas categorias já bem estabelecidas. Trata-se, então, de um universo de práticas populares marginalizadas que, apesar de mobilizar um importante número de jovens no Rio de Janeiro, em especial pelos seus subúrbios, segue sendo raramente abordada com alguma positividade, tendendo a serem, quase sempre, objeto de uma caça ao “Mal”, própria de um esvaziante julgamento criminalístico apenas. Falo, finalmente, de jovens que, dentre tantas outras coisas, transitam pela piXação de rua, pelas Torcidas Organizadas de Futebol, pelos Bailes de “Corredor” (Bailes também conhecidos como “Lado A x Lado B” e que têm na briga seu principal acontecimento) e pelas Turmas de Bate-Bola (numerosas no Rio de Janeiro e que se empenham todo ano na elaboração de fantasias tradicionais com motivos meio femininos, meio infantis e meio monstruosos, para serem, então, exibidas em suas saídas e caminhadas pela cidade durante o carnaval), construindo uma espécie de cosmologia “rueira” do Rio de Janeiro que foi e segue sendo terreno para meu trabalho garimpeiro de campo, no esmiuçamento de seus valores, éticas e estéticas que compartilham e que, como já foi dito, serão entendidos aqui como indícios para desenvolvermos melhor essa subjetividade popular, lugar de ensaios, em boa medida, inconscientes, de resistência aos paradigmas desencantados da modernidade.


  Pois bem, para entendermos melhor que resistências são essas e onde elas aparecem, vamos, então, partir da empiria para propor algumas costuras teóricas. Para começarmos, vamos a uma fala de um piXador chamado Nuno que, em conversa comigo, ao tentar ensaiar as razões pelas quais piXava, sintetizou assim: “se alguém conseguir responder o porquê, todo mundo para.” (NUNO, piXador em conversa).


  Antes de desenvolver o que proponho a partir dessa fala, ouçamos também Maique, um rapaz de 25 anos, membro da Torcida Organizada Fúria Independente do Guarani que me alertou, durante nossa conversa, quanto ao equívoco que eu cometia em compreender esse seu vínculo à Torcida, como uma escolha no sentido consciente, sóbrio e individual do termo. Para tanto, ele disse:


Eu não diria que tive uma escolha, eu não tive a chance de escolher, eu simplesmente ia aos jogos e ficava lá, comecei a ajudar com as coisas, comecei a ser prestativo em tudo, vesti a camisa, mas tudo sem escolher, simplesmente sentindo e fazendo. Foi o caminho natural e em nenhum momento tive a sensação de uma escolha, eu simplesmente fui indo. Era um universo que me atraia. (Maique, torcedor em conversa).


  Fazendo, então, uma ponte com a questão já apontada e cerne deste artigo, ou seja, a função construtiva e o impacto objetivo do enigma na vida das pessoas, podemos já entender a fala do Nuno como um discurso com alto poder de síntese e eloquência quanto a isso. Nuno não apenas assumiu sua incapacidade em expressar com clareza as razões pelas quais ele dispende boa parte de suas energias com a piXação, discurso que durante a pesquisa pude encontrar em um vasto número deles, mas foi além e aproximou a fictícia possibilidade de uma clara explicação, à morte da cultura, repousando, portanto, a continuidade do empenho de “todos” não em uma iluminada “tomada de consciência”, mas na manutenção do misterioso enigma de “não saber muito bem porque” e justamente por isso, continuar fazendo. Uma espécie de reconhecimento humilde que aparece como pista no discurso do Nuno, quanto à função ativa da irracionalidade na construção de nossa racionalidade, movimento bastante parecido com o que fez Maique na segunda fala. Maique promove uma incisão também dura ao indivíduo moderno, retirando de si, outra vez com humildade (reconhecendo o humus coletivo que o compõe), a posse detentora da autoria total do que será sua vida, abrindo mão da noção de escolha, em seu sentido estritamente individual, como responsável pela sua condição de membro de Torcida Organizada, trazendo, então, para compôr as razões desse destino, também, a dimensão do sensível que estaria para além dos limites de nossa escolha consciente, “simplesmente sentindo” e sendo “atraído” por aquele “universo”. Haveria alguma responsabilidade, portanto, do ambiente no desenho de nossos destinos, o que torna seu desenrolar nunca plenamente explicável e sempre, portanto, dependente, em algum grau, dessa positividade do enigma nunca completamente desvelável.

  Um enigma que se mostra sem nunca ser visto, que deixa pistas, mas nunca é capturado e que nesse esconde-esconde sem fim, garante a colheita contínua da cultura, uma vez que esta precisa, como aposto aqui, erguer defesas subjetivas que lhe permitam garantir que algum bom pedaço da vida siga sem que saibamos muito bem explicá-lo. Daí podemos dizer que de onde pouco conhecemos, de alguma zona liminar de nossa subjetividade, não habitável por nenhum vocabulário gramatical, é de lá que a cultura colhe seu mais elementar alimento – a poética.


  Em resumo, e parafraseando o trecho de Jung que trago na sequência, há uma tremenda dificuldade do racionalismo moderno em aceitar e/ou perceber que no que “eu não sei” está depositado boa parte do que “eu sou” e do que “poderei vir a ser”, afinal, para tal paradigma de leitura de mundo, não pode haver nada indecifrável e mais do que isso, a única máquina de decodificação de tudo está no homem iluminado, na sua consciência iluminante, poderíamos dizer. Sendo assim, já podemos apontar uma analogia importante entre o que venho chamando aqui de “enigma” e o inconsciente coletivo em Jung:


O racionalismo moderno é explicativo e até se orgulha moralmente de suas tendências iconoclastas. De um modo geral, as pessoas se contentam com o conceito pouco inteligente de que o enunciado do dogma visa uma impossibilidade concreta. Poucos se dão conta de que poderia ser a expressão simbólica de determinado conjunto de ideias. Não é tão fácil dizer em que consistiria essa ideia. E aquilo que ‘eu’ não sei, simplesmente não existe. Por isto, para esta burrice esclarecida, também não existe uma realidade psíquica não consciente. (2011, p. 100)


  E seguindo em Jung (2011) para sustentar uma das premissas principais deste trabalho, ou seja, a de que o “enigma”, ou o inconsciente, tem papel definitivo e, por que não, objetivo na construção de si, do mundo, das belezas, e em última instância, da vida em sua condição poética, vamos a um outro trecho em que ele sugere, outra vez em tom crítico às limitações da concepção moderna da razão, que não é dentro dos limites da consciência que encontraremos todos, e talvez nem os mais definitivos elementos determinantes na produção de nossas imagens de mundo, indicando assim, a potência objetiva do inconsciente no nascimento do que somos, do que fazemos, do que falamos, de nossa autopoiésis, por fim.


O pensamento não dirigido é motivado sobretudo subjetivamente, e isto menos por motivos conscientes do que inconscientes. Por certo produz uma imagem do mundo diferente daquela do pensamento consciente, dirigido. Mas não existe razão real para se admitir que a primeira nada mais seja que uma distorção da imagem objetiva do mundo, pois é duvidoso se o motivo interior, sobretudo inconsciente, que dirige os processos de fantasia, não representa um fato objetivo. (p. 49-50)


  Em última instância, após as duas falas do Nuno e do Maique, seguidas dos dois trechos de Jung, o que cabe deixar marcado para seguirmos, é o indicativo de que esse “si mesmo” moderno, isolado e que encontraria todos os impulsos de seus atos dentro de sua própria fortaleza, não monopoliza todos os elementos necessários a uma mais minuciosa compreensão de si e do mundo. E já não há, em especial no nosso caso, por parte da juventude, muita vergonha ou pudor em aceitar essa fragilidade de si, utilizando-a até, em boa medida, como uma força, como uma honra, um orgulho. E essas duas falas, seriam dois exemplos, digamos, duas materializações efêmeras do enigma se mostrando sem se revelar. É como se a meninada tramasse, no nível do inconsciente, energias de compensação que ganham forma não só em seus ditos, como acabamos de ver, mas em seus fazeres, como veremos, e que deixam escapar, por vezes em doses cavalares, por vezes em doses mais homeopáticas, a aceitação de que a consciência está longe de ser auto-suficiente na nossa construção. E se, sendo breve, para a psicanálise, é quando acontece uma melhor assimilação dos elementos inconscientes pela consciência, que o paciente adquire um conhecimento mais composto sobre si, podemos também entender, fazendo uma analogia entre o corpo do paciente e o corpo social, que tal disposição em aceitar o impacto objetivo do que é enigmático e inconsciente e ainda dar-lhe forma, por parte dessas culturas jovens, possa ser também lida como um indicativo de que está em curso uma realocação das dimensões negadas, processo crítico, sem dúvida, perene aos exageros, claro, mas também campo de força resistente na defesa e exibição de um inexorável mundo mais composto, para usarmos uma expressão de Maffesoli.

Com efeito, na ideologia do homo oeconomicus, o fato de o indivíduo ter sido analisado como pivô auto-suficiente da sociedade acabou fazendo com que fosse eliminada ou pelo menos postulada a superação da imperfeição. Em contrapartida, a reafirmação da pessoa plural num mundo policultural tende a integrar o mal como um elemento entre outros. Ele pode ser vivido, tribalmente – e, com isto, “homeopatizar-se”, tornar-se mais ou menos inofensivo. (MAFFESOLI, 2004, p. 15)


  Outra manobra discursiva recorrente entre eles nesse mesmo sentido é a de deslocar a justificativa quanto ao que se é e ao que se faz, dos certames da boa razão consciente para o sensorial, chamando para compôr a razão, uma dimensão que fora condenada à quarentena no processo de ocidentalização moderna – a dimensão corpórea –, sugerindo assim uma racionalidade francamente composta que incluiria a própria irracionalidade. São os poros e as terminações nervosas catalisadoras dos sentidos que são chamadas a ocupar lugar determinante na construção de suas belezas, de suas formas de vida. A despeito do que pensamos ter de convictos, portanto, aquilo que sentimos também mobiliza nossas escolhas, não pela via do convencimento, mas pela frequência da vibração, e durante a pesquisa, a recorrência com que isso aparecia, dá bons sinais de que a franqueza desses jovens na aceitação da ruína da razão moderna, não se trata de uma particularidade de um ou outro mais perspicaz, mas de uma sabedoria já bastante comum. Seria, então, para irmos junto com Maique, mais uma questão de compatibilidade emotiva corporal que de escolha consciente. Vamos, então, a outros trechos eloquentes da pesquisa:


O barulho da lata, o cheiro da tinta, hoje, isso faz parte da minha vida. (FYT - piXador em conversa)

Quando eu senti o cheiro da tinta, acho que aquilo fisiologicamente mexeu comigo, porque na semana seguinte eu já estava indo para reuniões com lata de tinta. (RUNK - piXador em conversa)

Você tem que sentir o cheiro de suor, ficar sem camisa e colocar uma bermuda. Só assim você vai começar a entender (Barão – piXador e funkeiro em conversa)

Talvez ele não te explique assim, a natureza da coisa, Mas ele vai te dizer com convicção: “porque eu curto” (TATÁ – piXador em conversa)


  Mesmo sob o vício comum de tentar “explicar melhor” o que se faz – esse primado de molduras modernas onde o que se fala e se interpreta sobre a coisa vale mais que a coisa em si –, tais trechos, ainda assim, abandonam as categorias tradicionais onde geralmente pomos as justificativas mais respeitáveis para os nossos feitos. Não lançam mão nem da economia clássica, nem da política, nem de algum desamparo social (o que não seria mentira), nem de qualquer ideologia, mas ao contrário, abrem mão frequentemente dessas bases de onde poderiam encontrar, até com certa facilidade, um sentido para o que fazem, a fim de, em seu lugar, elevar à condição de justificativa, exatamente o que dela fora destituído durante a lapidação da ética moderna – a sensorialidade da experiência, o prazer, a estética. Seja pela embriaguez da tinta, pela dimensão poética do dorso nu e seu cheiro de suor, pela importância da simples bermuda, ou pela síntese preguiçosa do “porque eu curto”, essa meninada zomba e embaralha os códigos já caducos, não permitindo ver nem sentir a fronteira entre ética e estética. Quero porque gosto, faço porque vibro, só sentindo pra entender, e nisso nos lançam num precipício. Urge, portanto, fazer dessa queda livre, uma boa descida expedicionária. Nessa descida, então, junto com piXadores, torcedores, bate-bolas e funkeiros, estou também acompanhado por outros que empreenderam essa mesma tarefa paradoxal de pensar a dimensão do impensado. Para o momento, trago novamente Gumbrecht (2010) que investiu numa crítica ao reinado da interpretação, entendido pela tradição moderna como única dimensão produtora de conhecimento sobre a humanidade, defendendo, por outro lado, que há, na própria fisicalidade do mundo, na sua “presença”, no que há de “tangível”, um elemento determinante na nossa relação com o mundo, conferindo, assim, à experiência estética, ou seja, ao corpo vibrátil empírico, uma capacidade, por tanto tempo negligenciada, de fazer florescer saberes. Perecepção também recorrente em Maffesoli (2007):

A experiência, seja ela qual for, encerra uma potencialidade cognitiva. A demarcação pode ser uma noção peculiar à política, à moral ou a certa forma de ciência – mas não serve, de modo algum, para a definição do conhecimento. (p. 199)


  Nesse sentido, e fazendo a analogia com o nosso campo em particular, a piXação, as torcidas, o baile, as turmas de bate-bola, e todo o repertório estético do jovem popular, são em si mesmo, enquanto “presença” inexorável e inegável na cidade, catalisadores de conhecimento e determinantes na experiência de estar na cidade. Sendo assim, a presença do fenômeno é tão ou mais importante que aquilo que se fala dele, tanto o é que, como pudemos ver, quando indagados sobre as razões de suas praticas, esses meninos e meninas praticantes lançam mão frequentemente de metáforas sensoriais, a fim de produzir um efeito dessa “presença” em quem os ouve, servindo-se, para isso, mais do enigma da poesia que da explicação clarificante. Nesse caso, o próprio discurso pretende funcionar como “presença”, impedindo que a experiência seja ameaçada por um único sentido, e dando, para isso, lugar devido à fisicalidade como fator determinante para uma compreensão composta da cultura. Trata-se, portanto, menos de saber o que pensam e mais de sentir o que sentem, recolocando em cena assim a corporeidade, dimensão negada para a invenção do homem incorpóreo moderno. Parece-me, então, justamente o que Gumbrecht (2010) diz:


No entanto, só os efeitos de presença apelam os sentidos – por isso, as reações que provocam não têm nada a ver com Einfühlung, isto é, com imaginar o que se passa no pensamento de outra pessoa. (p. 15)


  Arrisco assim dizer que há uma predisposição contemporânea nessas culturas jovens, mas certamente não só nelas, em indicar pelo seu cotidiano, pelo seu estilo de vida, e paradoxalmente mesmo em muitos dos seus pensamentos, que aquilo que se consegue pensar não sintetiza por completo o ser que se pensa, uma vez que a dimensão pensante do ser não o encerra e nem depende exclusivamente do que é controlável por “ele” para emergir. Jovens, então, que põem a noção de “ser” moderno em questão exatamente como o fez Foucault em As palavras e as coisas (2007), quando, a partir inclusive de um vocabulário psicanalítico, percebe na gradativa aceitação da existência de um inconsciente pelo homem de sua época, um indicativo de importantes mudanças epistemológicas em curso, apontando com isso, as limitações do cogito cartesiano, ancorado no reforço do pensamento como atividade que garantiria a “segurança” da “instituição” indivíduo, numa luta mesmo contra o que nele há de ilusório, de não-pensado, nas palavras de Foucault:


É que, para Descartes, tratava-se de trazer à luz o pensamento como forma mais geral de todos esses pensamentos que são o erro ou a ilusão, de maneira a conjurar-lhes o perigo, com o risco de reencontrá-los no final de sua tentativa, de explicá-los e de propor então o método para evitá-los. No cogito [contemporâneo], trata-se, ao contrário, de deixar valer, na sua maior dimensão, a distância que, a um tempo, separa e religa o pensamento presente a si, com aquilo que, do pensamento, se enraíza no não-pensado. (p. 446-447)


  Pois bem, esse pensamento não-dirigido, composto em sua maior parte pelos elementos de nosso inconsciente, esse tipo que nos toma de forma involuntária, e cuja forma por excelência é o sonho, compõe-se de toda uma sorte de narrativas imagéticas repletas de absurdos, imoralidades, desvios e surrealismos, mas que a gente consegue obliterar, envergonhados, por se dar na ordem do invisível. No entanto, por outro lado, quando a expressão desse não-dirigido, desse não-pensado, se dá inscrita no corpo, os vestígios dessas obras involuntárias são viscosos, ficam, deixam resíduos visíveis, odores, manchas. São presenças. Como tão bem expressou Nelson Rodrigues em sua peça Toda nudez será castigada, quando o personagem Patrício zomba de Herculano e, imaginando se suas tias examinassem suas cuecas, diz “E viram, pelas cuecas, que você é homem, o teu desejo pinga! Você é homem, homem, homem”. Esse pingo, cuja mancha nunca sai completamente, são os transbordamentos estéticos dessas vidas jovens que me interessam, enquanto que a cueca aqui é a metáfora do mundo ou da cidade se preferirmos. Mantendo-se na questão do corpo, mas voltando a Gumbrecht, sem tanta dramaturgia, é claro, ele também sugere esse corpo “tocado” como alvo de uma negação que foi necessária para que se pudesse elevar o pensamento dirigido como exclusiva dimensão do que seria humano, repressão que teve um alto custo.

...qualquer forma de comunicação, com seus elementos materiais, “tocará” os corpos das pessoas que estão em comunicação de modos específicos e variados – mas não deixa de ser verdade que isso havia sido obliterado (ou progressivamente esquecido) pelo edifício teórico do Ocidente desde que o cogito cartesiano fez a ontologia da existência humana depender exclusivamente dos movimentos do pensamento humano. (GUMBRECHT, 2010, p. 39)


  Pode-se advogar dizendo que não seria um privilégio nem do Ocidente e nem da Modernidade, esse desenvolvimento de uma instância moral crítica que atue gerindo essa dimensão nunca completamente controlável que é o não-pensado, a fim de preservar o “eu” dos perigos inerentes ao “si mesmo” composto. No entanto, talvez, a intensidade alcançada pela hipertrofia do “eu” moderno ocidental tenha chegado a níveis tão extravagantes que foi possível crer, como vimos, cartesianamente, que, pelo “pensamento”, superaríamos por definitivo o impacto do não-pensado, não deixando mais espaço nem lugar aos perigos do ilusório e do fantástico. Parece-me que mesmo Jung e Freud, representantes por excelência da psicanálise – campo da ciência que, digamos, “fez a curva” ao investir no “pensamento sobre o não-pensado” –, concordaram quanto a isso. O primeiro, como já dito, atribuindo à tal mentalidade moderna a “qualidade” de “burrice esclarecida” e o segundo afirmando que o homem moderno ocidental “contém a consciência moral, uma instância crítica do Eu que também em épocas normais se contrapôs criticamente a este, mas nunca de maneira tão inexorável e injusta.” (2011, p. 67).


  No entanto, como disse, há um custo que se paga por tão fraca assimilação do inconsciente coletivo pelo corpo social, e esse “Mal”, que se preferiu crer ter sido possível extirpar, recobra seu espaço. Um “Mal” que insurge provocando crise, uma vez que funciona sobre outras bases epistemológicas, diante das quais o homem desenvolvido no sistema epistêmico ocidental parece atrofiado na sua capacidade de perceber seu “lugar” – percepção que, como Maffesoli bem mostra, segue atuante especialmente nos cotidianos populares, alimentando boa parte de seus saberes comuns, humildes no reconhecimento de que nem tudo cabe “em suas mãos”.


O confronto com o mundo subterrâneo é mesmo encarado como um momento necessário para o que é considerado um “ser-mais” em devir. As expressões populares “Há males que vêm para o bem”, “O mundo tem lugar para tudo” etc. não se enganam ao estabelecerem uma sinergia entre todos os componentes do dado mundano. (2004, p. 41-42)


  É, a meu ver, portanto, desse mesmo reconhecimento, central nesses ditos populares, que essas práticas jovens se nutrem para produzir suas radicalidades. Uma juventude que, portanto, através de sua performance, do que faz, de como vive, de sua constelação imagética, dá variadas formas a esse disforme não-pensado. Sem lhe conferir um sentido único e sem também autoatribuir-se a posse do mesmo, ela o faz presente. Não investe na sua explicação, o que seria seguir perpetuando as bases epistemológicas caducas da modernidade. Pelo contrário, protege-se dessa tendência exacerbando a presença, a forma, o fantástico. A “explicação” das razões porque sou piXador, torcedor, funkeiro ou bate-bola, encerra-se na tinta no muro, no rojão da torcida, no corredor do baile e na fantasia, ou melhor, reconhecendo a potência do conceito de Gumbrecht (2010), encerra-se na materialidade da minha “presença”! Talvez, então, na recusa da posse das razões explicativas pelo Nuno, na negação da autoria da escolha por Maique e na sensorialidade do suor e da bermuda como forma de entendimento defendido por Barão, estejam três imagens eloquentes quanto a esse estado de relaxamento que esses jovens imputem ao pensamento dirigido, garantindo sua elasticidade e a abertura de fissuras em seu tecido geralmente rígido, por onde escapam com mais facilidade e se fazem presença, o fantástico, o subterrâneo, o inconsciente, o “Mal”. Digo isso em companhia de Jung (2011):


Um enfraquecimento do interesse, um leve cansaço, é suficiente para anular a adaptação psicológica exata ao mundo real, que se manifesta pelo pensamento dirigido e substituí-la por fantasias [...]; se a desatenção aumenta, perdemos pouco a pouco a consciência do presente e a fantasia domina. (p. 46)

  Nesse relaxamento, então, que esses meninos impõem à dimensão “dirigida” de si mesmos, tornam-se catalizadores singulares de fantasias, de tendências, podemos dizer assim, que não lhe são propriedades exclusivas, mas que adormecem em todos. Suspendem, então, nesse processo, temporariamente suas propriedades que lhe conferem posição social e que compõem, digamos, sua “biografia oficial”, substituindo, inclusive, seus nomes oficiais por nomes “fantasias”, como tão bem expressou Nuno:


Quem está aqui é o Leandro falando sobre o Nuno. Quem paga minhas contas, quem sustenta minhas filhas é o Leandro. O Nuno não tem filha, não trabalha, fica arriscando a vida por aí. O Nuno é louco, nem chama que ele vai fazer merda aqui. Ele vai roubar tua câmera. (Nuno, pixador em conversa)


  Aqui, esse roubo possível da câmera é uma alegoria disfarçada de “apenas” piada, mas que carrega uma sabedoria milenar recorrente em diversos ritos de passagem, onde, para lambuzar a sociedade com o que ela tem de comum e reatar os laços que a hipertrofia da estrutura social possa ter ameaçado, é preciso, de tempos em tempos, suspender as propriedades, interditar os prestígios sociais, balançar as hierarquias, bagunçar os códigos, manobras frequentes que Victor Turner (1974) apontou muito bem em diversos cenários culturais, dos hippies aos ndembo passando pela ordem de São Francisco.


Nestas fontes, tanto religiosas quanto seculares, mantém-se uma conexão bastante regular entre liminaridade, inferioridade estrutural, a mais baixa posição social e estrangeirice estrutural, de um lado e de outro, valores humanos como paz, harmonia entre todos os homens, fecundidade, saúde do espírito e do corpo, justiça universal, camaradagem e fraternidade entre todos os homens, igualdade diante de Deus, da lei, ou a força da vida de homens e mulheres, jovens e velhos, e de pessoas de todas as raças e grupos étnicos. Em todas essas formulações utópicas tem especial importância a permanente conexão entre igualdade e ausência de propriedade. (p. 163-164)


  Trata-se de uma sabedoria arcaica, sempre muito presente nesses saberes populares, de que a própria manutenção da estrutura social depende das visitas temporárias da “communitas” que, por outro lado, carrega todas as características potencialmente ameaçadoras à estrutura. Digamos, com isso, que a estrutura opera pela divisão, pela distribuição de papeis, pela gestão dos prestígios, enquanto que a “communitas” regruda jubilosamente os separados ao todo comum. De tal maneira, impede que a estrutura se hiperestruture-se, desenhando assim uma espécie de autodefesa diante da tendência, própria de tal processo estruturante, em jogar a comunidade numa patológica assepsia, o que tornaria essa necessária suspensão eventual das propriedades para se “sentir a comunidade”, uma impossibilidade epistêmica. É nisso, a meu ver, que se cava boa parte das crises emergentes na pós-modernidade, uma vez que, como já indiquei anteriormente com Freud e Jung, a modernidade teria reagido a essa potência da “communitas” e lutado pela manutenção de suas “propriedades” com tanto entusiasmo, que acabou fazendo da “communitas” não mais uma ambivalente ameaça salutar a ser vivida e gestada ritualmente, como faziam os antigos, mas um perigo que precisa, a todo custo, ser de uma vez por todas superado. Daí que somos resultantes de uma carência de ritos de passagem, cujos efeitos danosos em nossa psiquê não podem ser muito bem medidos. A pós-modernidade seria, então, nesse caso, a reencenação obscena do alto custo inescapável à tão vigorosa negação do “devir comunidade”. Como bem indicou também Turner (1974):


Certo é que nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente sem esta dialética. O exagero da estrutura pode levar a manifestações patológicas da “communitas”, fora da “lei” ou contra ela. (p. 157)


  A tese que ora defendo, portanto, é a de que o cotidiano dessas juventudes é, em boa medida, movido de maneira paroxística por essa epistême de “communitas”. Jovens, então, que compõem com vasto repertório de visualidades, de poéticas, de gestos, de humores, uma espécie de zona de resistência político-subjetiva à operação colonizatória moderna que, agindo na subjetividade,

produziu impedimentos epistêmicos à aceitação de que, voltando outra vez em Castoriadis e em Gumbrecht, há sentido no não-sentido e há importância inescapável do enigmático no adubo do que é comum. Impõem dessa forma, portanto, aquele que é, a meu ver, o maior desafio a nós, tributários da subjetividade moderna, do cogito cartesiano – a perda da propriedade erguida com maior preciosismo pela modernidade, mais endurecida que qualquer muralha, a propriedade do sentido.


  Em um mundo que nos últimos séculos fez campanha pela aquisição, desapropriando o sentido da função que a dimensão da perda assume em todas as sociedades, esse empreendimento, feito de maneira espontânea por esses jovens que pesquiso, reconhece a melhor acepção de “luxo” e de “dispêndio” desinteressado. Gastar energia esculpindo formas do impensado sem solicitar o lucro da posse do sentido, assim, essas estéticas parecem dar esperanças à Bataille que, em 1933, já denunciou a falta de capacidade da “humanidade consciente” em reconhecer a importância do dispêndio improdutivo.


É triste dizer que a humanidade consciente permaneceu menor: ela se reconhece o direito de adquirir, de conservar, ou de consumir racionalmente, mas exclui, em princípio, o dispêndio improdutivo. (BATAILLE, 2013, p. 20)


  Caminhando para o final desse texto, é da garagem utilizada nos preparativos da Turma de Bate-Bola “Legalize”, que fica entre os bairros de Colégio e Rocha Miranda, no subúrbio do Rio de Janeiro, que trago uma imagem que é apenas uma entre tantas outras desse vasto repertório de expressões poéticas sedimentadas nessas culturas jovens, mas que parecem ser resultantes de incalculáveis saberes ancestrais como que depositados em nossas heranças subjetivas. Basta, então, um ambiente mais propício, como esses, ou uma singularidade menos coagida, como a desses meninos e meninas, para o não-pensado sair de sua condição invisível, embora sempre atuante, para ganhar corpo, tornar-se tangível. Talvez seja esse o papel tanto das culturas populares, quanto dos poetas, dos artistas – o de tornar tangível, o de tornar sensorialmente experimentável, esse mar de águas revoltosas, escuras e desconhecidas que compõem a maior parte de nossa vida psíquica, podendo assim, diante delas, sob a forma de fantasias, poéticas, pixos, máscaras monstruosas, finalmente domá-las. Justamente, como aponta Turner ao se aproximar da psicanálise:


Corporificar a ação invisível de feiticeiros e sombras em um símbolo visível ou tangível é um grande passo no sentido de remediá-la. Isto não está muito longe da prática do moderno psicanalista. Quando algo é apreendido pelo espírito, quando se torna um objeto capaz de ser pensado, pode ser enfrentado e dominado. (1974, p. 42)


  Digamos, então, que todo o sistema no qual a psicanálise investiu seus estudos já operava no nível do inconsciente há milhares de anos. Nesse sentido, tanto Turner quanto Jung reconhecem, cada um a sua maneira, o impacto decisivo do que herdamos de toda história humana naquilo que conseguimos expressar. Prevejo assim, algo que poderá ser melhor desenvolvido em outro momento, ou seja, que haja uma íntima proximidade entre o que o primeiro chama de “communitas” e o que o segundo chama de “inconsciente coletivo”:


Esses processos libertam seguramente energias instintivas, porém estou agora inclinado a pensar que a “communitas” não é apenas produto de impulsos biologicamente herdados, liberados das coações culturais. São antes produtos de faculdades peculiarmente humanas, incluindo a racionalidade, a volição e a memória, desenvolvidas pela experiência da vida em sociedade. (TURNER, 1974, p. 156)

Além das origens pessoais evidentes, a fantasia criadora dispõe do espírito primitivo esquecido e há muito soterrado, com suas imagens peculiares que se revelam nas mitologias de todos os tempos e de todos os povos. O conjunto destas imagens forma o inconsciente coletivo que todo indivíduo traz em potencial, por hereditariedade. (JUNG, 2011, p. 20)

  Vamos então à imagem e a quais os saberes ancestrais que ela depende para emergir:


                                                           Figura 1

  Quando esses meninos escrevem “perdeu tudo”, pergunto-me o que de nós é “perdível” e o que de nós, independente de nosso desejo e de qualquer coerção, permanece em nós, ou seja, pergunto-me o que seria esse “tudo”. “Tudo” o que lhe confere distinção, seus títulos, nomes, sobrenomes, posições sociais, prestígios, ou seja, todas suas propriedades que compõem seu lugar na estrutura social, tudo isso pode ser “perdível”. Em outras palavras, tudo o que fortalece sua armadura individual e que sustenta sua compatibilidade ao mundo “real” é “perdível”, e é justamente dessa zona liminar, aberta pelas fissuras das propriedades suspensas que, como vimos, a “communitas” ou o “inconsciente coletivo” emerge. Sem o mundo “real” como estrutura de proteção à emersão da poética, esta encontra caminho à superfície tangível, e esse corpo desapossado de condecorações, temporariamente incompatível à “realidade”, com a força da fragilidade do corpo nu desarmadurado desses jovens, “louco”, portanto, torna-se um ótimo condutor de poética, de arte no seu sentido mais amplo. O “Mal”, então, em processo difícil e arriscado de domação pelas suas máscaras e bolas de Bate-Bolas, pelos sprays do piXador, pelos enormes bambus das bandeiras dos torcedores, pelos rojões das galeras dos Bailes de “Corredor”.


  Por fim, então, para o momento, aponto também o papel político desse trabalho, afinal é essa a juventude pixadora, torcedora, bate-boleira, funkeira que vem tendo suas vidas desperdiçadas, desfuturadas, haja vista nosso convívio quase trivial com o alto número de assassinatos de jovens exatamente como esses. Indico aqui, portanto, que suas mortes são também resultantes dessa operação subjetiva que, de maneira esquizofrênica, nos leva a justificar o combate inconsciente que travamos contra as bases epistemológicas de onde germinam e florescem nossas próprias culturas populares. Quando os condenamos, portanto, aos nomes de vândalos ou vagabundos justificando suas torturas e assassinatos, o que fazemos é evitar o desafio que eles nos impõem, ou seja, o de aceitar em algum nível a dessacralização da propriedade não só material, mas a propriedade de si e do sentido, assim como o de aceitar que os limites do homem consciente moderno comporta uma parte muito reduzida de si. É o homem consciente diminuído, então, que reage pela sua mesquinha e limitada concepção de mundo, e assassina o jovem em expansão.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BATAILLE, George. A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
CANEVACCI, Massimo. Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos da metrópole. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
CASTORIADIS, Cornelius. Janela sobre o caos. São Paulo: Ideias e Letras. 2009
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GUMBRECHT, Hans Ulrigh. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. 7a ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo. Rio de Janeiro: Record, 2004.
MAFFESOLI, Michel. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Porto Alegre: Sulina, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Escala, 2006.
TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis, Vozes, 1974.