Palavra-chave: Artefatos/objetos artesanais. Ribeirinhos. Mapuá.
Keywords: Artisan artifacts / objects; Ribeirinhos; Mapua.
Introdução
Este texto tem por finalidade discutir a relação dos artefatos, objetos artesanais confeccionados pelos ribeirinhos do rio Mapuá, com o modo de vida desses povos. O Mapuá é um dos rios mais extensos e importantes do município de Breves, Ilha de Marajó, Estado do Pará. Ao longo de sua extensão encontram-se suas 14 comunidades[1], formadas atualmente por 870 famílias que moram tanto em casas isoladas quanto agrupadas em vilas, vivendo da agricultura de subsistência e da exploração dos produtos da floresta, sobretudo a madeira.
Trata-se de um lugar conhecido pela dificuldade de acesso por ser distante da sede do município, como pela beleza natural (composta por floresta e lagos) e por uma história marcada pelas lembranças e vestígios das ações humanas construídas pelos antepassados, como também pela vivência e produções históricas e materiais no presente. Neste local desde 2014, venho desenvolvendo minha pesquisa de doutorado, que tem por objeto o Patrimônio arqueológico do Marajó, estudado por meio das narrativas orais de moradores das comunidades: Nossa Senhora das Graças, Santa Rita e Nossa Senhora de Nazaré.
O interesse por este objeto começou a ser delineado ainda em 2008, quando viajei ao Mapuá pela primeira vez. Nessa viagem “descobrir” a existência de um cemitério indígena, de casarões antigos e de uma cruz milagrosa, acompanhados de curiosas histórias. Achados que chamaram bastante minha atenção, e mesmo sem a intenção, naquele momento, de fazer uma pesquisa acadêmica capturei algumas imagens do lugar, com a ideia de um dia voltar para conhecer um pouco mais sobre o Mapuá e seus fatos históricos.
Assim, após cinco anos desse primeiro contato, com a perspectiva de um doutorado em antropologia, retornei ao Mapuá para então estudar sua cultura material e sua história, ou melhor, para conhecer que fatos e acontecimentos humanos se escondem entre a floresta e os lagos desse lugar. Para isso, em minha vivência etnográfica na região, primeiro procurei conhecer o que os moradores sabiam das pessoas, dos indígenas que habitaram esse lugar? O que contavam sobre o cemitério indígena e os diferentes vestígios arqueológicos encontrados nas comunidades? E como lidavam com essas questões?
A partir desse movimento fui começando a pensar e delinear um caminho para realizar a pesquisa. Comecei a observar que para entender os vestígios materiais, se fazia necessário compreender as pessoas em sua relação com a terra, a água, os recursos da floresta, os objetos e as coisas produzidas e utilizadas na vida cotidiana. Nessa vivência a entrevista semiestruturada, a observação participante, o levantamento arqueológico e a fotografia tem se constituído em importantes técnicas e estratégias metodológica na coleta de dados.
Com essas técnicas, em especial, a fotografia mapeei diferentes artefatos construídos pelos ribeirinhos com produtos retirados da floresta e utilizados de várias formas na vida cotidiana, a exemplo, do paneiro de tala, do remo, do casco, do forno para assar a farinha, do cacuri para pegar o peixe, etc. Esses objetos configuram-se como elementos indispensáveis para a garantia da sobrevivência, representando-se assim como estratégias do saber-fazer e das relações estabelecidas com o meio ambiente.
É exatamente essa relação que procuro abordar aqui neste texto. Para tanto, estruturei o presente texto em duas seções mais introdução e considerações. Nesta destaco, que os diferentes artefatos confeccionados pelos próprios ribeirinhos refletem as relações de envolvimento direto desses povos com o meio ambiente amazônico, o que não se resume a retirada de recursos naturais, mas inclui a construção de conhecimentos sobre o rio, a mata e a floresta como elemento importante para a sobrevivência humana. Isso demonstra que o patrimônio material e arqueológico para esses povos vai além da ideia consagrada pela ciência moderna de base cartesiana, significa um conjunto de elementos que lhes permitem estabelecer uma interação constante com a natureza e sua materialidade cotidianamente e assim construir suas memórias e histórias.
No tópico a seguir, com base em pesquisas arqueológicas e históricas realizadas no Marajó trato dessa região evidenciando parte da história desse lugar, com o objetivo de entender como as relações estabelecidas no passado refletem na vida e no modo de ser dos ribeirinhos na contemporaneidade. Além disso, coloca em questão a importância da pesquisa arqueológica para a produção do conhecimento sobre a região. Seguindo a discussão adentro ao rio Mapuá e suas comunidades para finalmente discorrer sobre a relação dos artefatos arqueológicos, aqui definidos como objetos construídos pelos ribeirinhos, com o modo de vida cotidiana.
O Arquipélago de Marajó e as descobertas arqueológicas
O arquipélago de Marajó, localizado na foz do rio Amazonas, Estado do Pará, é considerado o maior arquipélago fluviomarítimo do mundo. É formado por mais de três mil ilhas, com destaque para a Ilha de Marajó, maior ilha do arquipélago, com 49.606 km². Trata-se de uma região rica em termos de recursos hídricos e biológicos, constituindo-se em uma das maiores biodiversidades do planeta.
Conforme Pacheco (2009), o arquipélago do Marajó compreende uma distribuição territorial em regiões composta por campos naturais, zonas de mata, floresta, praias, rios e mar, que forma na parte oriental o chamado Marajó dos Campos – abrange os municípios de Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari, Ponta de Pedras, Chaves, Muaná e São Sebastião da Boa Vista – e na parte ocidental, o Marajó das Florestas, abarcando os municípios de Curralinho, Bagre, Breves, Melgaço, Portel, Anajás, Gurupá e Afuá.
Schaan (2009) e Pacheco (2009) demonstram em seus respectivos estudos que em nome da consolidação do projeto eurocêntrico até os dois primeiros séculos de colonização da Amazônia brasileira, a Ilha de Marajó, chamada de Ilha Grande de Joanes, teve uma grande importância geopolítica para a conquista das Américas. Vista como posição privilegiada e estratégica para controlar o rio Amazonas e, então, se alcançar os interesses coloniais, tornou-se em um palco de intensas disputas entre as nações europeias, sobretudo, entre Portugal e Holanda.
Nesta ilha viviam diversas nações indígenas, que compunham dois grupos distintos: Aruãns, no lado oriental e Nheengaíbas, no lado, ocidental espalhados por toda parte. O primeiro falante de língua Arawak, adentrou no Marajó 200 anos antes da Colonização e o segundo, significando “gente de língua incompreensível” (Schaan, 2009:33) era composto por 29 nações indígenas diferentes, como Anajás, Mapuás, Pacaucacas, Guajarás e outros (SCHAAN, 2009) que podem ter migrado dos Andes para essa região (PACHECO, 2009).
Na virada do século XVII, Schaan (2009) comenta que os portugueses adentraram a ilha para escravizar os índios e dominar um território considerado muito importante para as pretensões comerciais da Coroa Portuguesa. Um território disputado não só com os indígenas, mas com outros europeus, tais como, franceses, ingleses, holandeses e irlandeses, que chegaram ao Marajó antes dos portugueses e de acordo com seus respectivos interesses estabeleceram contato com os índios. Uma relação vista como ameaça para a consolidação da ganância portuguesa.
Como estratégia para vencer essa disputa, os portugueses aliaram-se aos indígenas Tupinambás e investiram pesadamente para expulsar os demais europeus, e dominar os Nheengaíbas e Aruãns para torná-los objetos da coroa portuguesa. Conta Pacheco (2009) que tais portugueses realizaram infrutíferas expedições ao Marajó, fortemente combatidas pelos índios-guerreiros, os quais não assistiram passivamente a chegada e a invasão dos colonizadores, ao contrário usando de suas experiências de contatos e guerras anteriormente vividas, resistiram, criaram táticas de combate e defenderam suas vidas e seu território (SCHAAN, 2009; PACHECO, 2009).
Escreve Pacheco (2009:84):
O labirinto de ilhas, os ‘Marajós’, e seus habitantes cravados na foz do território a ser conquistado, não assistiram, passivamente, àquelas estranhas chegadas de agentes tão diferentes de suas visões humanas. Experientes em contatos e guerras tribais anteriormente vividas, entre si e com outras nações Aruãns, Sacacas, Marauanás, Caiás, Araris, Anajás, Muanás, Mapuás, Pacajás e os batizados de Nheengaíbas enfrentaram as armas portuguesas por quase 40 anos [...].
A legítima luta dos indígenas do Marajó pela defesa não só de seu território, mas da própria vida, história, memória foi, segundo esses autores, aos poucos controlada não pela arma de fogo, mas pela arma da religião. E para isso os padres da Companhia de Jesus, na condição de soldados da fé foram peças fundamentais, sobretudo Antônio Vieira. Este religioso, colocando sua vida pelos portugueses, e em oposição à guerra que considerava impossível dos portugueses vencerem, frente as resistências e ao conhecimento que as nações Nheengaíbas possuíam da região, se ofereceu para negociar um acordo de paz.
Assim, no natal de 1668 enviou dois índios convertidos com uma “carta aberta a todas as tribos Nheengaíbas, direcionada especificamente a dois chefes” (SCHAAN, 2009:38) propondo paz, sob a garantia de abolir com a escravidão e injustiça, conforme previsto na Lei da Abolição de Cativeiros Injustos de 09 de abril de 1655. E para selar esse compromisso Schaan (2009) relata que, em 1659, Vieira foi ao rio Mapuá (provavelmente, na localidade onde encontra-se atualmente a Vila Amélia, comunidade Nossa Senhora das Graças), no município de Breves para tentar convencer as tribos Mapuás, os indígenas que mais resistiram às investidas portuguesas.
No ano seguinte, Vieira retornou ao rio Mapuá para encontrar novamente com os Nheengaíbas. Quando chegou ao local do encontro, no desembarque os indígenas devolveram-lhe a imagem do Santo Cristo deixada por Vieira em seus cuidados no ano anterior e, com o mesmo respeito a veneraram. Após colocarem a imagem nas mãos de Vieira e discutirem entre si a proposta de paz apresentada por este padre, passaram então abraçar a fé de cristo e fazer as pazes com os portugueses, dando por encerrado os conflitos e estabelecendo a chamada “pazes dos Mapuás” (PACHECO, 2009; SCHAAN, 2009) e, desse modo, tornando-se em objetos da coroa portuguesa.
A negociação de paz foi feita com o cacique Piyé Mapuá, representante da federação de sete cacicados das nações Nheengaíbas, em que firmou-se um tratado no qual “assegurava a implementação de duas linhas de frente da política portuguesa no Vale Amazônico”. Nas colocações de Pacheco (2009:89), as linhas referem-se:
A liberdade para se navegar pelos estreitos de Breves, porta de entrada à extração de muitos haveres, riqueza e passagem obrigatória para quem desejasse alcançar Macapá e a Guiana Francesa; e afirmava a presença e a importância da Missão jesuítica na pacificação do gentio através dos aldeamentos.
Tal estratégia, juntamente com a fundação, em Belém, do Forte do Castelo, em 1616, ajudou os portugueses vencerem a guerra contra os indígenas e conquistarem, ou melhor, apossarem-se desse arquipélago. Assim, os índios que não morreram e fugiram, alguns foram recolocados para as missões religiosas e outros levados para trabalhar para os portugueses como escravos nas fazendas, engenhos, produção de farinha e extrativismos, o que explica a ausência de descendes direto dessas nações nos dias atuais nessa região, mas que se fazem presentes nas práticas e saberes tradicionais, nos traços e marcas identitárias da população e, obviamente nos vestígios arqueológicos.
A colonização da Amazônia foi, portanto, um processo que em nome da civilização eurocêntrica, escravizou e dizimou a maioria das povoações indígenas do Marajó. Um acontecimento atravessado pela violência, derramamento de sangue, sequestro do direito ao território, a vida, a história e memória dos povos indígenas. Todavia, embora, a violação acometida, os registros históricos mostram que os indígenas resistiram bravamente e criaram diferentes estratégias, inventaram novas fronteiras e configurações étnicas, políticas e culturais como forma de dar visibilidade as marcas de sua existência.
No Mapuá, essas marcas são percebidas a partir do cemitério indígena, dos pedaços de cerâmicas comumente encontradas pelos moradores em vários locais dessa região, como também dos casarões antigos e dos próprios objetos construídos pelos ribeirinhos a partir de saberes, conhecimentos culturalmente herdados dos indígenas, como o paneiro de tala muito utilizado na roça e na pesca, etc. Integra esse processo, os conhecimentos sobre os segredos da mata e do rio, o que inclui a habilidade de construir o próprio meio de transportes, no caso, o casco, as rabetas[2] que são manobrados com tanta rapidez e facilidade, entre as curvas e obstáculos ao longo do rio. Tratam-se assim de saberes, conhecimentos herdados e ressignificados na relação que estabelecem diariamente com o meio ambiente amazônico.
O rio Mapuá e suas comunidades: artefatos e vida cotidiana
Situado entre a mata e a floresta da Amazônia paraense, com sua água de cor escura e gélida o rio Mapuá banha uma parte da região rural do município de Breves. Como mencionado é um rio extenso, por isso é classificado em baixo, médio e alto Mapuá, predominando o ecossistema de várzea. Conforme Alencar (2007:95) o ecossistema de várzea compreende “as terras situadas às margens dos rios de águas brancas e sofrem inundação no período do inverno quando ocorrem as cheias dos rios”. Tal ecossistema ocupa “cerca de 1,5 % de toda a planície Amazônica e se estende numa área de 65 mil km² em território brasileiro”.
No baixo Mapuá, por onde geralmente se inicia o acesso às comunidades, o que ocorre somente por meio de barcos (pequeno e de médio porte), lancha (voadeiras), rabetas e cascos, uma parte é de terra firme e a maioria de várzea. Nesta parte está às comunidades Santíssima Trindade, Bom Jesus e São Sebastião e, assim como no restante das comunidades, os moradores costumam utilizar no dia-a-dia com mais frequência a rabeta e o casco tanto para transportar as pessoas, como para realizar suas atividades, isto é, para levar a madeira até a serraria, pescar, caçar e retirar o açaí, conforme pode-se observar nas figuras a seguir.
No médio Mapuá, área central desta região, estão as comunidades, Nossa Senhora das Graças (onde está a Vila Amélia, local onde se encontra o sítio de cemitério indígena, e uma fonte de água mineral), São José, São Benedito e Perpétuo Socorro. E na parte conhecida como alto Mapuá, estão as demais comunidades. Nesse perímetro, no período do verão amazônico (julho a dezembro) quando o volume de água do rio Mapuá e seus afluentes diminuem, trechos desses rios transformam-se em caminho. Com isso, os barcos de médio porte chegam até a comunidade Santa Rita, no rio Cumaru, e alguns casos até a comunidade Canta Galo, no rio de mesmo nome. A partir dessas comunidades o acesso a comunidades mais distantes, como Santa Maria, Nossa Senhora de Nazaré, se dá por meio de rabetas, casco, e, principalmente a pé. Esse fenômeno ocorre, sobretudo, nos meses de outubro, novembro e dezembro, quando o rio fica totalmente seco.
No inverno amazônico (janeiro a junho) ao longo do rio Mapuá, o nível de água atinge o volume máximo, e com isso grande parte das áreas de terras mais baixas ficam totalmente coberta pela água. Essa variação do volume de água imprime um ritmo de vida à população local, isto é, o rio e sua dinâmica ambiental condicionam de forma decisiva o modo de vida dos moradores e comunidades no Mapuá, caracterizado pela maneira de como ocupam o espaço, lidam com o ritmo da água e realizam as atividades de subsistências. Assim, a caça e o plantio da roça praticada no verão dão lugar a pesca e a exploração da madeira e palmito. Para tanto, o casco, o remo e a rabeta construídos pelos moradores constituem-se em artefatos/ objetos de extrema relevância para o seu deslocamento como mostrado nas imagens acima.
Durante o verão (julho a dezembro), objetos, como o paneiro, o cacuri feito de tala, também são indispensáveis na lida diária, principalmente no plantio da roça, na coleta do açaí, e na pesca do peixe. Integram tais estratégias a casa de farinha e seus diferentes instrumentos feitos de árvores extraídas da floresta, que não só permite a produção da farinha como promove a sociabilidade das famílias.
Pode-se dizer que tais objetos são, portanto, elementos indispensáveis para a garantia da sobrevivência, e representam o saber-fazer dos ribeirinhos na relação com o natural e também o social, o que envolve diferentes processos culturais em distintas épocas. Essa é uma questão que podemos exemplificar a partir dos instrumentos confeccionados pelos ribeirinhos para extrair da seringueira o leite utilizado na feitura da borracha, nas década de 1930 a 1950.
Figura 7: Na casa de forno a família preparando a farinha de mandioca e socializando conhecimentos. Foto: Eliane Costa, 2015.
Figura 8: Cacuri feito de tala de arumã (vegetação típica da Amazônia) para captura do peixe. Foto: Joel Pantoja, 2015.
Todo esse movimento permite também demonstrar que as formas de uso e acesso ao território pelos povos tradicionais (no caso, deste estudo, os ribeirinhos), empregam uma lógica econômica específica diferente da lógica do capital. Envolvem hábitos, práticas e costumes e diferentes relações sociais e suas capacidades inventivas, as quais não podem ser invisibilizadas (LITLLE, 2002).
Pode-se dizer que estes artefatos/objetos artesanais medeiam as relações de envolvimento dos ribeirinhos com o natural (incluindo a exploração dos recursos naturais) e o social. Tem-se aqui, um processo de transformação do natural e do humano que não se dá de forma dicotômica, conforme entende a ciência moderna de base cartesiana, em que a natureza é dominada pelo homem. Mas envolve como compreende Latour (2009) uma relação de simetria, em que tanto homem transforma a natureza como é por ela transformado. Ação que certamente inclui a produção material, econômica atrelada a uma produção também cultural.
Para Arjun Appadurai (2008) os objetos são partes da cultura material, da produção material humana. Logo, as pessoas produzem e utilizam os objetos e nesse processo emaranham-se mutuamente. Daí, a cultura material ser para Tilley (2008, apud Lima, 2011) mais do que um reflexo direto do comportamento humano. Ela age sobre o comportamento humano com seu poder transformador, enquanto parte de estratégias de negociação social. A cultura material constitui-se, desse modo, em meios ativos de reprodução, transformação e efetivação de valores, ideias e distinções sociais em diferentes tempos e espaços.
Costa (2010:30) referindo-se a objetos arqueológicos define-os como sendo “construções materiais que não só representam e apresentam ideias, mas que também criam ideias sobre nós e para nós mesmos”. Objetos oferecem assim além de propriedades físicas e superfícies externas, informações sobre e para as pessoas em tempos e espaços diferentes. “Na verdade, artefatos, instrumentos e objetos materiais são instrumentos definidores do homem, já que eles definem a própria condição e sociedade humana em oposição a sociedades animais” (DA MATTA, 1981:29).
No caso dos objetos artesanais construídos pelos ribeirinhos no Mapuá, caracterizam-se em instrumentos definidores do homem tal como observa Da Matta (1981). Perspectiva que pode ser observada, em especial, na forma como esse povos aprenderam a lidar com a dinâmica ambiental do rio Mapuá. Esta afeta diretamente o modo de vida dos moradores e influencia na maneira como eles tem ocupado o espaço para construir suas casas, fazer a roça, retirar os produtos da floresta e até para ter acesso a cidade e as demais localidades.
Uma importante estratégia, na relação com o rio e o ambiente, adotada pela população ribeirinha é a própria forma como organizam e constroem suas casas. Estas ficam próximas à margem do rio, uma característica, segundo Alencar (2007:98) “dos povoados da várzea”, para facilitar o acesso ao porto e a água e, assim, poder realizar diferentes atividades. De acordo com essa autora a localização à margem dos rios permite que os moradores “controlem a movimentação de pessoas e embarcações, pois o rio é a única via de acesso às comunidades”.
Esses povos acumulam saberes sobre o rio e seus ciclos naturais, a influência nas atividades como a retirada da madeira, a pesca, o manejo dos recursos naturais, o que inclui as limitações e proibições de algumas práticas no período do verão e do inverno para garantir a preservação da natureza e a própria sobrevivência (DIEGUES, 2001). As comunidades tradicionais para Diegues (2001:65) tem uma representação simbólica dos espaços por elas ocupados. Tais espaços fornecem a esses povos “os meios de subsistência, os meios de trabalho e produção e os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais, isto é, os que compõem a estrutura de uma sociedade (relações de parentesco etc.)”
Trata-se de um território de reprodução econômica, das relações sociais culturais, como também configura-se como o lugar das representações simbólicas e do imaginário mitológico e religioso. Questão que pode ser observado na relação que os ribeirinhos do Mapuá estabelecem com a religião, a maioria, adeptos do catolicismo e com os símbolos religiosos, como as igrejas e até mesmo uma cruz colocada à margem do rio, chamada por eles de “cruz milagrosa”. Esta cruz é tida como uma espécie de artefato simbólico-religioso, utilizada como forma de se obter milagres, tanto em relação a garantia de saúde, sobretudo das crianças, como para outros tipos de graça que se deseja alcançar.
Durante minha vivência etnográfica pude perceber que muitos se apegam a cruz para cuidar de enfermidades, pois o serviço de saúde oferecido não responde as necessidades das famílias. Na verdade o posto de saúde encontra-se sempre fechado e quando o técnico de enfermagem se faz presente também não tem o que muito fazer, pois além de não saber como tratar das prováveis doenças, não conta com nenhum tipo de medicação. Assim, a cruz tornar-se o elemento sagrado para garantir a saúde, principalmente de crianças. E conforme as narrativas coletadas, por longos anos a cruz tem feito bastante milagres para os moradores, bem como para pessoas de outros lugares. É um artefato sagrado, cuja origem está ligada a um religioso que no passado morou naquela localidade, e que depois de ser encontrado, após três dias de morto, com o corpo intacto e enterrado as margens do rio passou a fazer milagres.
Esses objetos artesanais e simbólicos demonstram ainda que a relação estabelecida pelos ribeirinhos com o lugar, vai além da ideia deste ser apenas o ecossistema de onde retiram os meios para sobreviver. O lugar é o território onde se vive, criam suas histórias, memórias, desenvolvem suas práticas, costumes, hábitos etc. É então, um espaço histórico, social e culturalmente transformado e construído pelo trabalho das diferentes gerações.
Em outras palavras, um território com múltiplos significados, carregado de história, memória construídas no passado e ressignificadas pelos ribeirinhos, como um grupo social no presente. “É o grupo social que constrói e da significado ao lugar, e cada grupo constrói sua identidade a partir dos vínculos de parentesco que unem as famílias entre si e estas como o lugar aberto pelo ancestrais” (ALENCAR, 2007:98).
Para Alencar (2007) o pertencimento ao lugar, e ao grupo de parentesco é o que credencia o indivíduo ter acesso ao território e aos recursos naturais e isso funciona como uma espécie de mapa cognitivo, o qual serve para orientar as relações entre as pessoas e dessas com o ambiente. Os ribeirinhos no Mapuá vem ao longo dos anos construindo e dando significado a cada comunidade, formadas por laços afetivos e de parentesco das famílias (LÉVI-STRAUSS, 1975) entre si e com o lugar tradicionalmente ocupado, que como demonstrado, pode-se dizer que foi aberto pelos indígenas. Pois, embora não sejam descentes diretos desse povos, os ribeirinhos carregam em suas histórias e memórias, marcas do saber culturalmente herdado desses antepassados, as quais estão sendo constantemente ressemantizados na relação estabelecida no presente com as pessoas, o lugar e os objetos.
Demonstra-se, como isso que patrimônio material e arqueológico para esses povos vai além da ideia clássica consolidada pela ciência positiva, significa um conjunto de elementos que lhes permitem estabelecer uma interação constante com a natureza e sua materialidade cotidianamente e assim construir suas memórias e histórias. Compreensão que ajuda entender e pensar a arqueologia não de forma fixa ou limitadas ao artefato, vestígio do passado, mas como uma ciência que tem o humano social como centro das descobertas arqueológicas (GOMES; LOPES, 2012). Tal como escreve Trigger (2004:404):
A arqueologia não está separada da sociedade, nem é um mero reflexo desta, mas tem um papel a desempenhar em um diálogo racional a respeito da natureza da humanidade das relações entre a prática arqueológica e seu contexto social para facilitar.
Logo, “o trabalho da arqueologia não se restringe, de maneira geral, à localização e escavação de sítios e vestígios arqueológicos” (MARTINS; SCHAAN; SILVA, 2010:138), volta-se, também, para captar a história das gerações por meio de relatos, conversas etc. No caso deste estudo para entender e também captar a história dos ribeirinhos do Mapuá, por meio dos objetos, artefatos artesanais produzidos na intensa relação historicamente estabelecida com o meio ambiente. Um processo permeado de saberes e estratégias que mostra a capacidade dos povos tradicionais da Amazônia, lidarem com a floresta, o rio, a terra e seus reveses.
Considerações finais
Por todo o exposto, posso dizer que a vivência etnográfica junto aos ribeirinhos do Mapuá, possibilitou-me ao menos em parte tecer as seguintes considerações: o patrimônio arqueológico, no contexto estudado não se resume a marcas, vestígios apenas do passado, mas inclui artefatos construídos no presente, os quais caracterizam-se como elementos do saber-fazer e estratégias de sobrevivência na relação do homem com a natureza.
Em outros termos, são objetos característicos da ação humana e das relações de envolvimento direto dos ribeirinhos com o meio ambiente, o que não se resume a retirada dos recursos, mas inclui a construção de conhecimentos sobre o rio, a mata e a floresta como elemento importante para a sobrevivência humana. Compreende-se assim que ao longo dos tempos a população soube se relacionar com o meio ambiente e nesse sentido aprenderam a modificar a paisagem e também foram modificados por elas.
Daí que, para compreender o comportamento humano e sua relação com a cultural material faz-se necessário conhecer o ser humano na relação, passado e presente. Uma relação que envolve uma dinâmica e dimensões (sociais, culturais, etc.), complexas condizente ao tempo e ao espaço vivido. Em cada contexto pode-se dizer que os sujeitos atribuem sentidos, significados e valores as suas experiências sociais. E isso necessariamente remete a relação com o outro, com o meio, com os bens materiais e, por conseguinte, com patrimônio material como produção sempre cultural.
Desse modo, faz-se necessário entender que a pesquisa sob o olhar da arqueologia e etnografia é importante para pensar patrimônio material (arqueológico) e as categorias tidas como “clássicas” deste campo científico, não como categorias única, fechada, mas como categorias em construção. E nesse processo é fundamental a efetivação de um discurso que de fato dialogue com a realidade estudada (FOUCAULT, 2014).
Referências
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ALENCAR, Edna F. Paisagens da memória: narrativa oral, paisagem e memória social no processo de construção da identidade. TEORIA & PESQUISA, vol. XVI - nº 02 - jul/dez, pp. 95-110, 2007.
DA MATTA, R. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1981.
DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 3. ed. São Paulo: EDITORA HUCITEC, 2001.
COSTA, D. M. Arqueologias históricas: um panorama espacial e temporal. Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica v. 4, n. 2, jul./dez, 2010.
FOUCAULT, Michael. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitari, 2014.
GOMES, Raimundo Ney da Cruz & LOPES, Rhuan Carlos dos Santos. Cacareco de Índio e artefato arqueológico: conversas entre arqueólogos e as família Souza no Sítio Cedro, Santarém – Pará, 2012. Disponível em: <http://www.ppga-ufpa.com.br/uploads/producao/Gomes%20&%20Lopes%20%28201%29%20Cacarecos%20de%20%C3%ADndio...pdf.>. Acesso em Jun. de 2014.
LATOUR, Bruno. Entrevista Bruno Latour. Por Marcelo Fiorini. Revista Cult, ed. 132. Fev, 2009. Disponível em: < http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-bruno-latour/> Acesso em 11 Jun. 2015.
LEVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Rio: Tempo Brasileiro, 1975.
LIMA, Tania Andrade. Arqueologia histórica no Brasil: balanço biográfico (1960-1991). Anais do Museu Paulista, nova série n.1, 1993.
LITTLE, Paul E. TERRITÓRIOS SOCIAIS E POVOS TRADICIONAIS NO BRASIL: POR UMA ANTROPOLOGIA DA TERRITORIALIDADE. SÉRIE ANTROPOLOGIA, 2002. Disponível em: <www.nute.ufsc.br/bibliotecas/upload/paullittle.pdf>. Acesso em março de 2015.
MARTINS, Cristiane P.; SCHAAN, Denise Pahl & SILVA, Wagner Fernando da Veiga e. Arqueologia do Marajó das Florestas: fragmentos de um desafio. In: SCHAAN, Denise P.; Martins, Cristiane P. (Orgs.). Muito além dos campos: arqueologia e história na Amazônia Marajoara. 1. ed. Belém: GKNORONHA, 2010.
PACHECO, Agenor Sarraf. En el corazón de la Amazonia: identidade, saberes e religiosidade no regime das águas. 2009. 354 f. Tese (Doutorado em História Social) - Programa de Pós-graduação em História Social, Pontifícia Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em:< https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/13141/1/Agenor%20Sarraf%20Pacheco.pdf>. Acesso em 11 de Jun. de 2015.
SCHAAN, Denise Pahl. Cultura Marajoara. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2009.
TRIGGER, B. História do pensamento arqueológico. São Paulo: Odysseus, 2004.
[1] Santíssima Trindade, São Sebastião do Mapuá, Bom Jesus, Nossa Senhora das Graças, Santa Rita, São José, São Benedito, São Sebastião do Canta Galo, Santa Maria, Canta Galo, Assembleia de Deus, Nossa Senhora de Nazaré, Perpétuo Socorro, Nazaré do Socó.
[2] Pequeníssimos barcos de madeira sem tolda e com motor na polpa, confeccionados para viagens rápidas, com capacidade para 01 ou mais pessoas. No Mapuá dificilmente um morador não possua uma rabeta, a qual serve também como transporte para muitos alunos irem à escola.