Palavra-chave: crianças e adolescentes, sexualidades, gênero.
Keywords: Children and teenagers, sexualities, gender.
Considerações iniciais
O estudo em andamento tem como proposta desenvolver pesquisa para apresentar uma etnografia, a partir da coleta de dados sobre a construção das sexualidades de crianças e adolescentes no município de Breves, no Arquipélago do Marajó e em Belém. Essa temática já vem sendo trabalhada ao longo da trajetória:de uma das autoras, na imprensa, como jornalista, atuando como repórter, e em seus estudos acadêmicos, no mestrado, quando analisou a cobertura dos jornais O Liberal e Diário do Pará, de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes (CASTRO, 2014). Agora, será trabalhada a mesma temática, só que não mais restrita a situações de violência, mas considerando vivências que se dão no cotidiano das crianças e adolescentes, desde a infância, como brincadeiras, jogos, desenhos, fotografias e nas mais diversas formas de expressão da construção das sexualidades[1] para fazer uma análise norteada pela perspectiva de gênero.
Município-polo do Arquipélago do Marajó, Breves (foto 1) é chamado pelos moradores de “capital do Marajó”. O título, pelo que se conta por lá, deve-se ao fato da cidade congregar o maior número de serviços e políticas públicas, para onde se dirigem moradores das demais cidades quando precisam de algum atendimento público melhor, sobretudo nas áreas de saúde e educação.
Pelo mapa é possível observar que Breves localiza-se no centro da região marajoara, o que facilita também o trânsito de moradores do arquipélago para a cidade. Já de Belém para Breves, por via marítima, há duas opções de chegada: de barco, com preços de passagem variando entre 80 (acomodação em rede) e 130 reais (acomodação em cama, nos “camarotes”), com capacidade para 557 pessoas e a viagem durando em média 12 horas; e de lancha (catamarã), que custa 120 reais a acomodação em poltrona, com capacidade para 114 pessoas e a viagem tem o tempo de chegada reduzido pela metade em relação à primeira opção, durando cerca de seis horas.
Diante desse levantamento, escolhi[2] ir de lancha para fazer minha primeira incursão na pesquisa de campo. Assim, no dia 18 de julho deste ano parti para Breves para começar a fazer as primeiras observações. Era a minha primeira vez por lá. Nunca havia estado naquele município, embora já tivesse ido a outros da região, como Soure, Salvaterra e Curralinho. E, talvez por essa ‘primariedade’ no local, ao desembarcar em Breves, na tarde daquele dia ensolarado, veio a minha cabeça a descrição do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski, na introdução de sua obra “Argonautas do Pacífico Ocidental”, na qual narra o que sentira quando chegou ao litoral sul da Nova Guiné para a iniciação de sua pesquisa de campo:
Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco – negociante ou missionário – você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar – pois o homem branco está temporariamente ausente ou, então, não se dispõe a perder tempo com você (MALINOWSKI, 1978, p. 23).
Esse trecho da narrativa de Malinowski expressa bem o que também senti, ao desembarcar da lancha, um catamarã da empresa de navegação Bom Jesus, em “minha ilha marajoara”. Só que, diferentemente das Ilhas Trobriand, do antropólogo polonês, que eram terras pouco povoadas, Breves tem grande densidade demográfica[3], é a maior do arquipélago, com quase 100 mil habitantes, o que já me impactou no momento da chegada.
O tamanho da cidade e a densidade populacional chamam a atenção. O terminal hidroviário de Breves fica localizado bem no centro comercial da cidade. O vai-e-vem de pessoas circulando pelo local é grande. Há muitos comércios e lojas que vendem todos os tipos de produtos, de roupas a comida. E por falar em comida, o preço do açaí (Foto 2) também é outro distanciamento em relação à Belém. Enquanto na capital paraense, em bairros da camada média social, ele é comprado por cerca de 15 reais, na “capital do Marajó”, o açaí é vendido por 5 e até 4 reais, em abundância, em muitas casas comerciais, os chamados “mercantis” da cidade, em que pode se encontrar de “tudo” para vender.
Foto 2: Mercantil de venda de açaí e motos circulando pela cidade.
Foto: Avelina Castro
Fonte: arquivo da tese
Há também vários portos na beira da baía e uma grande circulação de motos (Foto 2), que é o principal veículo de transporte da cidade. Além das motos particulares, que representam um certo “status social” para as famílias que as possuem, há também um intenso serviço de mototáxi ofertado aos moradores e visitantes. Todos os motoristas usam camisas de algodão de mangas compridas, com o nome “Mototaxi” estampado nelas ou na frente da e costas da vestimenta, mas quase ninguém usa capacete ou respeita a capacidade do veículo, que é de duas pessoas. Muitos trafegam com três e até quatro pessoas e muitas motos são vistas circulando sem placas.
Assim que desci da lancha, usei o celular para contatar a pessoa que iria me recepcionar na cidade: um homem de nome Carlos, amigo de um amigo meu de Belém, que me fora apresentado, virtualmente, dias antes da viagem. Técnico concursado da Universidade Federal do Pará (UFPA), do campus de Breves, o meu primeiro interlocutor no “campo” já estava me esperando. Eu o avistara e o reconhecera, de imediato, com base na foto que vira dias antes, quando conversamos pela rede social whatsapp.
Cumprimentos rápidos e partimos, em sua moto, para a casa da pessoa que iria me hospedar solidariamente, de nome Dynny, e que me fora apresentada por Carlos também, virtualmente. Mas, antes de seguirmos para o nosso destino final, demos uma pequena volta pela cidade e fiz algumas fotos. A primeira delas foi da igreja matriz de Nossa Senhora Santana (Foto 3), a padroeira da cidade, cuja festividade ocorre entre os dias 13 e 26 de julho e, portanto, estava em pleno andamento naquele dia.
Após esse pequeno registro, da entrada da cidade, que fica em um lugar chamado pelos moradores de “Beira” ou “Beirada”, onde costumam passear à noite, seguimos, então, de moto para a casa de minha “hospedeira solidária”. Com um sorriso enorme no rosto e enrolada em uma toalha, Dynny nos recepcionou, saindo do banheiro, que fica em uma das entradas de sua casa. Mais cumprimentos e, finalmente, conheci mais uma pessoa que eu também só conhecia pelo whatsapp. Já passava das três da tarde e ela logo pediu que eu deixasse minha mochila no quarto, providenciou para que eu tomasse um banho e me serviu um pouco de comida que preparara para mim e que guardara do almoço.
Desde os primeiros contatos feitos com Carlos e Dynny, e depois, nos meus relatos sobre isso, chamou muito a nossa atenção a prontidão em ajudar (uma desconhecida!) e a forma atenciosa e desprendida com que se colocaram à disposição, mesmo antes de conhecerem, presencialmente, aquela interessada pessoa, abrindo as portas de suas casas (e o coração), o que nos fez, assim, remeter ao referencial “Ensaio sobre a dádiva”, de Marcel Mauss (1998/1925), quando fala das chamadas prestações totais, no ‘potlatch’, que criam vínculos a partir do que o autor destaca como a “alma” presente nas coisas dadas e (exigidamente) retribuídas. Citamos o autor:
O vínculo de direito, o vínculo pelas coisas, é um vínculo de almas, pois a própria coisa tem uma alma, é alma. Donde resulta que apresentar alguma coisa a alguém é apresentar algo de si (...). Compreende-se logicamente, nesse sistema de ideias, que seja preciso retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua natureza e substância; pois aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma (MAUSS, 1998, p. 200).
E foi com essa reflexão em mente que vivenciei o meu contato, desde o início, com Carlos e Dynny, que ajudaram também na imersão (antropologicamente) necessária, naquela comunidade e na aproximação com as pessoas de lá, o que foi muito importante, pois, pensando em Malinowski, aprendemos que a pesquisa de campo precisa ser um contato intenso com a comunidade pesquisada, pois (referindo-se à ‘sua’ ilha) o pesquisador nos diz que precisa “procurar afastar-se da companhia de outros homens brancos, mantendo-se assim em contato o mais íntimo possível com os nativos” (1978, p. 25). Ou seja, é preciso “procurar a companhia dos próprios nativos” e tentar estabelecer um relacionamento natural com eles.
E foi isso que busquei desde os primeiros contatos com Carlos e Dynny. As conversas com eles me levaram a descobrir, por exemplo, que, mesmo sendo julho, que é período de férias escolares, havia uma escola em funcionamento na cidade. Durante quatro meses, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Lauro Sodré esteve em reforma e o ano letivo de 2016 só começou no dia 7 de julho. De posse dessa informação, fui, no dia seguinte para a escola, fazer minhas primeiras observações do comportamento das crianças e adolescentes que lá estudam, pois esse tipo de observação, como aprendemos primeiro, também, com Malinowski, é fundamental para a coleta de dados etnográficos.
O comportamento é, indubitavelmente, um fato, e um fato passível de análise e registro (...). Em relação ao método adequado para observar e registrar estes aspectos imponderáveis da vida real e do comportamento típico, não resta dúvida de que a subjetividade do observador interfere de modo mais marcante do que na coleta dos dados etnográficos cristalizados. Porém, mesmo nesse particular, devemos empenhar-nos, no sentido de deixar que os fatos falem por si mesmos (MALINOWSKI, 1978, p. 35).
Pensando nisso, iniciei as primeiras incursões em campo, tanto em Breves, quanto em Belém. Aqui, na capital do estado, as observações estão sendo feitas em uma escola, coincidentemente, de mesmo nome da de Breves: a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Lauro Sodré, localizada no bairro do Marco. Cerca de 1,3 mil crianças, adolescentes, e jovens, com idades entre 11 e 19 anos, estudam nela, nos turnos da manhã e da tarde.
Mesmo localizada em uma área mais central da cidade, a escola Lauro Sodré recebe alunos de vários bairros, ditos, “periféricos”, como Sacramenta, Curió-Utinga, além da Pedreira e do próprio Marco, onde a escola fica localizada. Na rua em frente é possível ver todos os dias uma concentração de adolescentes e jovens andando de skates e em grupos de conversas.
E foi nesses dois cenários, Breves e Belém, que iniciei minhas primeiras observações e conversas com adolescentes, e com a equipe técnica, como diretoria e coordenação pedagógica. O objetivo, como já dito anteriormente, tem sido o de observar as vivências de meninos e meninas e como eles constroem as sua sexualidades, como fez em sua tese de doutorado Alexandre Maurício Fonseca de Azevedo (2014, p. 121-125), ao fazer um estudo etnográfico sobre crianças especiais na Ilha do Marajó, no qual relata a observação dessas primeiras vivências de sexualidade em crianças e adolescentes da ilha. Além disso, o pesquisador também relata falas de familiares de meninas e meninos sobre essas práticas e experiências que constroem a sexualidade, pois segundo ele “as famílias, também se transformam na medida em que a infância vai se sucedendo pela adolescência dos filhos”.
Quando a idade e o mistério do sexo despertam o interesse das crianças, logo as histórias chegam às conversas de família, daí proliferam-se as fórmulas de coerção que não disfarçam o interesse em preservar as crianças de experiências que os pais consideram negativas em termos de iniciação sexual. Por outro lado, tais cuidados não são levados a cabo com extremo rigor, havendo sempre uma pequena margem de tolerância, inclusive muitos pais, em determinadas situações, sobretudo no caso dos meninos, fazem “vista grossa” às traquinagens, dando seu consentimento velado. (AZEVEDO, 2014, p. 123).
Relatos como esse de Azevedo, mostram a necessidade de observar, com atenção, essas vivências, o que estou fazendo a partir desse início de convivência com a comunidade da sede do município de Breves e de Belém, observando os comportamentos, as brincadeiras de rua, as rodas de conversa, os desenhos, as fotografias, as redes sociais, e todas as formas que crianças e adolescentes usam para se expressar e que estejam a alcance para observar e registrar. Também tenho me colocado na condição de ouvinte do que as crianças e os adolescentes têm a dizer sobre sexualidade, e sobre a vida, suas vidas, de modo mais amplo.
De acordo com a antropóloga Clarice Cohn (2005), estudiosa da temática e defensora de uma “antropologia da criança”, a idéia de que crianças não têm sexualidade é construída de forma histórica, social e cultural, ligada ao atributo da incompletude, de um ser em desenvolvimento, como “uma tabula rasa a ser instruída e formada moralmente” (COHN, 2005, p.7), pois ela pode ser tanto “a inocência” quanto “um demoniozinho a ser domesticado”. Em diversos discursos e práticas essas ideias são construídas e atualizadas.
Por sua vez, Elaine Reis Brandão (2006), também antropóloga, em seus estudos sobre adolescentes, no contexto do processo de individualização, mostra que eles têm um “apagamento” em sua sexualidade, sobretudo quando esta vivência não se encontra submetida ao casamento, como, pelo menos na exigência social, fora outrora. No caso das meninas, quando esta sexualidade é visibilizada, vem acompanhada do temor de uma gravidez, que “implicaria a assunção de um papel social de adulto – de pai e mãe – e que ela não estaria ‘pronta’, pois a adolescência desperta no imaginário coletivo atributos como instabilidade, imaturidade, crise” (BRANDÃO, 2006, p. 62).
A chamada “gravidez na adolescência”, mesmo não sendo, inclusive, historicamente, nenhuma novidade no Brasil (embora não com este rótulo), foi somente há algumas décadas que tal evento passou a ser tomado como um “problema social” (PANTOJA, 2007); fenômeno que reconhece vivências de sexualidade entre adolescentes, mas dentro de um quadro de “gravidade” e “risco”[4].
Entre crianças (seus), desenhos, fotografias e vivências
No dia 19 de julho, meu segundo dia em Breves, dirigi-me bem cedo para a escola, onde conversei com professores e coordenadores pedagógicos sobre a pesquisa e o interesse do estudo em observar a vida de crianças e adolescentes daquele município. Foram muitas conversas e negociações, a partir de então, além de histórias contadas por eles sobre os alunos daquela instituição e a forma como enxergam a realidade de meninos e meninas, nesse período da vida.
Os coordenadores pedagógicos, de prenomes Adriana e Adriano, que são irmãos consanguíneos, destacaram em suas falas que “as crianças são criadas muito soltas”, em Breves, e que elas vão para a praça central da cidade, onde ficam até tarde, sem nenhum controle, observação ou atenção das suas famílias. “É um costume elas (crianças) ficarem até tarde na rua, aqui, as famílias criam essas crianças muitos soltas”, relata Adriana, acrescentando que esse é um costume na cidade, faz parte da rotina dela, pois à noite muitas pessoas vão para a “beira” ou “beirada” para conversar, consumir lanches e levar os filhos para brincar na praça e arredores (Foto 4), mas muitas vão sozinhas para o espaço e ficam por lá, até tarde[5].
Foto 4: Adolescentes fazendo selfie, na praça da “beira”.
Foto: Avelina Castro
Fonte: Arquivo da tese
Segundo Adriana, esse costume das crianças e adolescentes, na cidade, acarreta em dificuldades de discipliná-las na escola, onde muitos demonstram dificuldades em obedecer a ‘comandos’ e em respeitar hierarquias. A Escola de Breves possui cerca de 530 alunos, do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, distribuídos em dois turnos e com idade entre 7 e 15 anos, mais ou menos. Segundo Adriana, a idade correta para cursar o 5º ano é de 11 anos, porém em função de repetências e baixo aproveitamento escolar, há desníveis entre os alunos e alguns estão com 15 anos no 5º ano.
Para facilitar o processo de aproximação com as crianças e adolescentes da escola resolvi desenvolver com elas, algumas atividades com desenhos (Foto 5). Comprei papel ofício e giz de cera e levei para os momentos de observação e contato com eles, nas aulas de informática.
Ao sentar com as crianças no chão para fazer os desenhos lembrei da antropóloga Margaret Mead, referência que se fará tão presente no estudo maior da tese, que descreve como foi sua aproximação com as meninas nas ilhas Samoa, quando pesquisou, por vez primeira em nossa disciplina, essa ‘fase’ da vida, com um olhar para a sexualidade das adolescentes daquela sociedade:
Estudei com a máxima atenção as famílias em que as adolescentes viviam. Fiquei mais tempo nas brincadeiras infantis que nos conselhos dos anciãos. Falando sua língua, comendo sua comida, sentando-me descalça e de pernas cruzadas no piso forrado de seixos, fiz o possível para minimizar as diferenças entre nós e para aprender a conhecer e compreender todas as meninas de três aldeias na costa da pequena ilha de Ta’u, no arquipélago Manu’a (MEAD, 2015, p. 25).
E foi com o mesmo objetivo descrito por Mead (2015), de minimizar as diferenças (entre mim e as crianças e adolescentes da escola), que sentei no chão com elas e na primeira atividade pedi para que desenhassem as suas casas, tentando fazê-las o mais parecido possível – e que conseguirem – da realidade. Também pedi que desenhassem as suas famílias e demais pessoas que porventura morem na mesma residência. O objetivo com a atividade é estabelecer um diálogo com eles e observar as suas famílias, as relações de parentesco, o que pensam sobre namoro, casamento, suas vivências afetivas, sexualidades, enfim, como vivem e se constroem como sujeitos.
Durante a realização das atividades um dos desenhos me chamou a atenção (foto 6). Uma criança do 4º ano, que para resguardar a sua identidade chamarei, aqui, de João*, de 8 anos desenhou a sua família como sendo apenas ele, o pai e a mãe, desenhados bem ao lado de uma casa azul.
Quando João entregou o desenho dele e me explicou que se havia desenhado bem no meio, entre o pai e a mãe, eu perguntei se ele não tinha irmãos. O estranhamento se deveu ao fato de a maioria dessas crianças ser oriunda de famílias numerosas, muitas com seis filhos e mais. Foi, então, que João me contou, durante a nossa conversa, que ele se desenhou ao lado dos pais. Porém, ao ser indagado por mim se não moravam mais pessoas na casa e se não tinha irmãos, ele acabou me revelando que aquele casal que ele estava chamando no desenho de pai e mãe era, na verdade, seus avós maternos.
A conversa com João prosseguiu e em todas as perguntas que lhe foram feitas e durante todos os seus relatos, observei que ele considerava como pais os seus avós. Os seus genitores não aparecem no desenho de sua família. Ele me contou que os seus cinco irmãos moram com a mãe “biológica”, como se usa dizer, em outra casa e que o pai, que é separado de sua mãe, mora com outra mulher e mais um casal de filhos desse casal, seus irmãos também.
Em Belém, na Escola Lauro Sodré, meu contato inicial foi, em especial, com as estudantes adolescentes, observando-as em horários em que estão fora das salas de aula. Algumas delas já foram adicionadas à minha rede de amigos no facebook. A primeira delas foi Luciana, de 17 anos, que cursa o segundo ano do ensino médio e que mora no bairro da Pedreira. Ela está sempre rodeada pelas amigas nos intervalos de aulas e horário de recreio. O namorado, segundo ela conta, um jovem de 18 anos, não é visto com ela na escola porque ele estuda em outra instituição de ensino, mas no facebook, as postagens de selfies (Foto 7), acompanhadas de textos com declarações de amor, são constantes.
A imagem acima é a foto de capa do perfil de Luciana, uma selfie feita pelo namorado, que aparece deitado com ela em uma cama, abraçados. No texto da postagem, uma declaração de amor dela: “Meu amor, te amo” e um coração (<3) finaliza a simbologia de amor do texto. Ao observar as postagens da adolescente nos últimos dois anos é também possível perceber muitas outras postagens do casal, nas quais a estudante contabiliza o tempo de namoro com o amado, que já soma dois anos e três meses de relacionamento afetivo. Luciana conta que já teve outros namorados e que o atual é a sua terceira vivência de namoro.
Outra interlocutora na pesquisa é a adolescente Juliana, de 17 anos. Estudante do terceiro ano do ensino fundamental, ela tem uma irmã, a Carla, de 11 anos, que também estuda na escola Lauro Sodré, só que no ensino fundamental. Moradora do bairro da Pedreira, ela vai e volta andando todos os dias, trajeto que faz, geralmente, sozinha, já que a irmã tem horários de aula diferente dela.
Juliana conta que também tem namorado. Mas, desde 18 de setembro, em seu perfil no facebook, as postagens de fotos com o namorado deram lugar a postagens com a avó dela, que faleceu. A partida da avó tem resultado em muitas postagens, relatando a dor e a falta que a estudante sente da matriarca da família (Foto 8). No lugar da foto de perfil há apenas uma placa com a frase: “Meu coração está de luto” e na foto de capa, uma outra placa com uma passagem bíblica de Provérbios 4:23, que diz: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração porque dele procedem as fontes da vida”.
Na postagem acima, observa-se o texto de declaração de amor para a avó, a quem ela diz em uma hashtag #Te_amarei_eternamente.
Juliana morava na mesma casa que a avó e tinha uma relação quase filial, como a que João, de 8 anos, estudante da escola Lauro Sodré, em Breves, demonstrou em seu desenho de família. A avó, simbolizada por Sant’Ana, avó de Jesus Cristo e padroeira de Breves, também aparece na narrativa de Juliana, em Belém, revelando uma importante relação de netos e netas com avós, o que será, posteriormente, observado de forma mais aprofundada para analisar a influência e/ou qualquer tipo de participação dessas mulheres no processo de construção da sexualidade das meninas e meninos, que no caso de Juliana é declarado, publicamente, nas redes sociais, ser a avó uma pessoa que lhe “ensinou muitas coisas”. Essa referência inicial e especial neste texto e, possivelmente na tese, às avós (talvez, mais do que aos avôs), prende-se, não só às observações particulares (da pesquisadora), mas às reflexões conjuntas (orientanda & orientadora), sobre o referencial protagonismo dos avós – das mulheres, mais fortemente – na socialização dos netos – o que atravessa, seja como for, as classes sociais, inclusive (Lins de Barros,1987; Peixoto, ; Motta-Maués, 2012; Sanches, ; Estumano, ; Ferreira, ;Silva, ). E, entre nós, no Brasil (mas, não apenas), até mesmo na “criação” dos pequenos, como mostram todas as estatísticas. Sem contar as explorações do tema da relação avós&netos na literatura, em que pontificam figuras como Marcel Proust, Elizabeth Bishop, Doris Lessing, e, na Antropologia, a própria Margareth Mead. Ter presente esta especial referência logo ao primeiro contato com o campo em Breves, não parece, assim, ser obra do acaso.
Considerações finais ou para ‘fechar’ uma reflexão no seu início...
O trabalho etnográfico que está começando a ser construído em Breves, no arquipélago do Marajó e em Belém, estando assim, portanto, ainda em fase bastante inicial. Nesse artigo, procuramos mostrar, contar a história de uma espécie de ‘ponto de partida’ da pesquisa para o estudo de um tema ainda pouco explorado em nossa disciplina – as construções e vivências da sexualidade, tal como isso se der a observar e perceber, entre as crianças e adolescentes que já constituem e constituirão, os sujeitos da interlocução necessária para o mesmo. Tratamos aqui de como foram os primeiros contatos com os dois locus de pesquisa e com os primeiros interlocutores, as primeiras observações, as relações de troca, com suas dádivas, enfim, as primeiras vivências em campo.
Temos por certo, muito há ainda a ser observado e muitos dados a serem coletados, para fluir um densa interpretação no diálogo teórico-etnográfico profíquo exigido em nossas análises. Parte disso foi o que já tentamos fazer constar aqui.
Exemplos de “personagens” desse ainda não presente diálogo, são os debates referentes à questão do gênero e da sexualidade, temáticas que informam uma extensa e diversificada produção acadêmica a ser, de algum modo, incorporada ao estudo em desenvolvimento que gerou este artigo. Embora, evidentemente, tais discussões não estejam (não possam estar) sendo esquecidas nas observações que já estão sendo feitas nos dois espaços pesquisados - sobretudo na coleta de dados, observações e conversas informais com as adolescentes, em Belém e em suas postagens nas redes sociais.
Referências
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BRANDÃO, Elaine Reis. Gravidez na adolescência: um balanço bibliográfico in O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. HEILBORN et al. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.
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CASTRO, Avelina Oliveira de. Crias do abuso na Amazônia: os (ab)usos discursivos da imprensa paraense na cobertura de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Letras e Comunicação, Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia, 2014.
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TODOROV, Tzvetan. A viagem e a narrativa. IN: As morais da história. Trad. Helena Ramos. Lisboa, Publicações Europa-América, Coleção Biblioteca Universitária 62, 1992.
[1] Por “vivências de sexualidade em todas as suas formas” queremos dizer que o estudo etnográfico proposto nessa pesquisa tem como objetivo analisar a construção da sexualidade de crianças e adolescentes e seus significados a partir do olhar dos próprios meninos e meninas. Neste sentido, a pesquisa considerará as vivências e aprendizados que se dão em relações de afetividade, de liberdade, resultando ou não em gravidez, além das vivências iniciadas ou marcadas pela violência, como é o caso das que estão inseridas, por exemplo, na rede de exploração sexual do município. Queremos destacar também, que serão observadas relações organizadas tanto em arranjos hetero quanto homoafetivos.
[2] Quando estiver no texto o verbo ou a referência na/à primeira pessoa, significa que o protagonismo, nesse caso, é apenas da segunda autora deste trabalho.
[3] O município de Breves fica na região norte do Pará, na mesorregião do Marajó e possui uma população estimada pelo IBGE, em 2015, de 98.231 pessoas. Essas e outras informações foram obtidas em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=150180. Acesso em: 26. Jul. 2016.
[4] A antropóloga Ana Lídia Nauar Pantoja analisa a questão da gravidez na adolescência, dentro da proposta maior da tese de estudar paternidade e maternidade entre adolescentes e jovens de camadas populares e médias, mostrando dinâmicas de vivências da sexualidade em relações de afetividade entre adolescentes em tese de doutorado defendida em 2007, no programa que hoje se chama Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA).
[5] O município de Breves, no Arquipélago do Marajó, ficou conhecido a partir de 2008 como sendo um pólo onde existe uma rede de exploração sexual de crianças e adolescentes, na qual meninas e meninos, além de serem explorados sexualmente no local são também, em alguns casos, traficados para outras cidades e países. A denúncia foi feita nesse mesmo ano pelo arcebispo do Marajó, Dom Luiz Azcona, e resultou na instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Estado do Pará (Alepa), quando foram denunciados vários casos nesse sentido.