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Keywords: South Africa, Zulu, Performance, Visual, Documentary
INTRODUÇÃO
Um dos marcos históricos mais significativos pela performance analisada neste artigo foi provavelmente a cerimônia de conferir o prêmio Nobel ao Nelson Mandela, que aconteceu em 1993. A banda musical, escolhida para acompanhar o leader antiapartheid do African National Congress foi Ladysmith Black Mambazo, os mais conhecidos performers de Isicathamiya.
Os Ladysmith Black Mambazo, nome traduzível como “O Machado Negro da cidade de Ladysmith”, são uma banda globalmente reconhecida como testemunha da música sul-africana e africana. Seja do ponto de vista nacional, em particular em relação ao sucesso entre os africanos negros, seja internacionalmente, os Ladysmith Black Mambazo se afirmam como os representantes da música negra na época do apartheid. Nos anos oitenta, o período mais conflitante da luta antiapartheid, os Ladysmith eram uma banda que tocava capilarmente nas cidades e nos contextos rurais do país. Por intermédio da colaboração com o músico estadunidense Paul Simon e a realização do famoso disco Graceland, eles ganharam um sucesso internacional que ainda hoje continua, em particular no contexto norte-americano.
Os Ladysmith Black Mambazo, o mais famoso grupo de Isicathamiya, com o cantor americano Paul Simon (ROLLING STONE, 1987)
Começando com esse tipo de circulação mundial, o objetivo deste artigo é assumir como ponto de observação os contextos onde a Isicathamiya é hoje praticada na África do Sul. A transição democrática que começou em 1994, depois do fim do regime do apartheid, teve claramente amplas consequências na sociedade sul-africana. Se por um lado o ideal de “nação arco-iris”, proposto pelos líderes atuantes no partido African National Congress, permitiu uma transição pacífica, por outro lado essa transição foi necessariamente ligada a uma forte abertura ao mercado internacional e com este ao neoliberalismo.
Esses processos se refletem na dimensão local da Isicathamiya. Longe das luzes das mídias internacionais encontramos hoje, seja nas áreas rurais, seja em contextos urbanos, muitos espaços sociais onde essa performance tem forte relevância simbólica. O ponto de observação proposto neste trabalho será um desses espaços localizado na cidade de Durban, terceira cidade sul-africana e capital do estado de KwaZulu-Natal, na costa oriental da África do Sul. Como nas outras metrópoles, em Durban acontecem com regularidade, na noite de cada sábado, competições entre bandas. Normalmente realizadas em espaços marginais, essas competições são uma das heranças contemporâneas mais relevantes desse gênero musical.
Entre o ano 2011 e 2013 realizei um documentário sobre um desses espaços que, como veremos, é talvez o mais relevante da história de Durban. Neste artigo, a Isicathamiya é analisada através da autoetnografia da produção audiovisual. A realização do documentário, além de permitir o compartilhamento da descrição etnográfica, é também uma ferramenta para visibilizar os conflitos presentes nas múltiplas narrações construídas sobre um específico objeto cultural. Além disso, o laço entre produção e etnografia da produção permite uma reflexão sobre a polifonia da narração (BACHTIN, 2010) e sobre a relação entre independência das vozes dos personagens e as dinâmicas de poder são ligadas à produção de um audiovisual.
ISICATHAMIYA
A metrópole de Durban ainda conserva a herança da época do apartheid e dos bairros divididos com base na etnicidade dos seus habitantes. A transição política e o fim do regime segregacionista transformaram essa infraestrutura urbana, impondo, como acontece na maioria de espaços urbanos, as diferenças econômicas como novo parâmetro de diferenciação dos espaços urbanos.
Antigamente, o centro da cidade de Durban era um espaço “branco”, onde os negros só podiam entrar com uma permissão oficial, que lhes consentia trabalhar. Nos anos quarenta foi criado o primeiro espaço de agregação para negros no centro da cidade: o Durban Bantu Social Centre[1]. Este foi criado num momento de movimentação sindical com o objetivo de regulamentar – e controlar – a agregação de negros. Todavia esse espaço se tornou um lugar de intensa atividade política. Por meio de entrevistas não gravadas em audiovisual, descobrimos que reuniões clandestinas organizadas por várias entidades políticas eram realizadas nas salas do prédio. Muitas vezes eram disfarçadas com atividades culturais desenvolvidas no salão: exibições de cinema, encontros de boxe e, para voltar ao tema deste artigo, competições de Isicathamiya.
Como na maioria dos contextos urbanos sul-africanos, os trabalhadores migrantes moravam em bairros caraterizados por uniformidade de “raça” denominados, na linguagem comum, “townships”. “Raças” que eram simplificadas por uma classificação racialista, eram na realidade caraterizadas por uma enorme diversidade e complexidade cultural. Nos anos quarenta, começou a se desenvolver esse estilo de música e dança que hoje é chamado de Isicathamiya. Essa performance, como aconteceu em outros casos (MITCHELL, 1956), era uma reelaboração de várias danças diferentes praticadas na área rural, que no mundo urbano eram ressignificadas. Não só os símbolos dos povos africanos entravam nesse processo, mas também aqueles do dominador, o branco, cuja roupa social foi adotada pelas primeiras bandas. Sem a pretensão de analisar historicamente as transformações deste gênero, o objetivo aqui é contextualizá-lo na contemporaneidade.
A palavra Isicathamiya significa, literalmente, “caminhar com passos de gato”, para não ser ouvido. Também o estilo de música, a capela, é caraterizado para ser cantado quase murmurado, mantendo a uniformidade das vozes dos coros. Coros geralmente eram constituídos de 5 até 20 cantores, divididos em várias tonalidades. Essa ideia, de não fazer barulho, nasce nos albergues onde a Isicathamiya foi praticada na época do apartheid. As performances aconteciam como hoje, de noite. Daí a necessidade de “não levantar a voz” para deixar dormir os trabalhadores que não participavam como performers ou como público, nas competições.
O Durban Bantu Social Centre, que nos anos setenta passa para a gestão da associação cristã Youth Male Christian Association (YMCA), é hoje um albergue para trabalhadores de baixa camada social. Todavia, no salão, utilizado para várias atividades, todos os sábados à noite aconteciam competições de Isicathamiya, que chegavam a agrupar pelo menos cem performers por sábado. O investimento, seja econômico, de tempo dos performers, da maioria das pessoas de baixa camada social que se dedicam a essa música, é impressionante. Entender as dimensões simbólicas e materiais desse investimento e investigar a abrangência dessa sugestiva performance foram as justificativas que sustentaram a produção do documentário Slow Walker (2012).
TROUBLE-SHOOTING
A tentativa de criar uma representação audiovisual dos performers de Isicathamiya foi todavia um grande desafio. Não obstante a relevância que essa performance teve no exterior, sendo os Ladysmith Black Mambazo os mais importantes representantes desse estilo, na África do Sul foi uma música colocada geralmente em segundo plano. O mercado musical, já voltado a outros estilos de música mais heteronômicos, deixou a Isicathamiya na área da música “tradicional”. Neste sentido, não obstante o gênero seja amplamente praticado, ele dificilmente consegue ter uma visibilidade social e mediática ampla. Como consequência, a Isicathamiya, além de alguns eventos como a competição anual nacional, continua sendo marginal aos canais de financiamento cultural, estadual e de particulares.
Essas reflexões, que encontramos nas palavras dos performers, foram fundamentais para pensar o documentário como uma ferramenta em primeiro lugar deconstrutiva de um imaginário global, construído através de narrações heteronômicas. A Isicathamiya, gênero muitas vezes associado à ideia de “tradicionalidade” e de “africanidade”, aparece várias vezes no cinema hollywoodiano. Neste sentido é suficiente lembrar o famoso filme de animação da Disney, The Lion King (ALLERS, MINKOFF, 1994), que há como trilha sonora uma música escrita nos anos trinta por Salomon Linda, um famoso Isicathamiya performer de Durban.
Os Evening Birds, 1941 (da esquerda): Solomon Linda, Gilbert Madondo, Boy Sibiya, Gideon Mkhize, Samuel Mlangeni e Owen Sikhakhane. (ERLMANN, 1996)
Se no imaginário essa música se liga à imagem de África Rural, normalmente veiculada nas propagandas turísticas, no documentário é utilizada, para acompanhar a trajetória, uma camera-car, que sai dos bairros ricos da cidade de Durban e chega até as periferias, onde os performers de camada social baixa moram.
Todavia essas tentativas de quebras foram recebidas em sentidos contrastantes pelos mesmos performers que aparecem no documentário. Isso se tornou muito claro no momento da primeira restituição do documentário. A minha tentativa de respeitar a polifonia que se encontrava entre os performers, sobre o que este estilo teria que ser para se tornar mais relevante, criou vários conflitos no momento da restituição. Essas vozes diferentes propunham diferentes projetos políticos pela Isicathamiya, que se refletiam no estilo musical-performativo adotado. Em uma entrevista, sucessiva à restituição do documentário, um dos protagonistas questionou essa necessidade de manter a Isicathamiya como algo “tradicional”. Se antigamente, na época da apartheid, os cantos eram de volume baixo, porque eram feitom em lugares onde outros trabalhadores estavam dormindo, hoje em dia é necessário “levantar as nossas vozes”.
A narrativa do filme sublinear mostra a diferença entre vários grupos, alguns mais “tradicionalista” e outros cujo objetivo é “modernizar” a Isicathamiya. Um foco sobre duas bandas, os Real Solution e os Messanger A nos permite ver as diferenças musicais, que refletem essas escolhas e as diferencia entre os projetos políticos das duas bandas. Os primeiros dependendo de um reconhecimento institucional, de natureza quase museal, e os outros querendo uma afirmação da Isicathamiya no mercado musical e do entretenimento.
A restituição, então, foi um momento de manifestação de conflitualidade e de manifestações. No plano dos conteúdos, a ética etnográfica que adotei, colocando as múltiplas posições e opiniões no mesmo plano, lidou com as críticas ao documentário. Não adotar uma posição clara gerou reprovação da maioria dos performers. Em segundo lugar, no plano linguístico, a adoção de um estilo baseado na câmera a mão e a total ausência de efeitos visuais, que contrasta com os clipes autoproduzidos pelas bandas, foi percebido como uma diminuição da força sonora e visual da Isicathamiya. Se o objetivo do trabalho de estimular o debate social sobre um objeto foi atingido, o documentário, que foi positivamente recebido no mundo da academia e do cinema, não foi utilizado pelos atores sociais como meio de reivindicação política.
CONCLUSÕES
Se o filme pode ser considerado como um objeto “em si” e estudado por múltiplos reflexos que o receptor projeta nele, também tem que ser considerado um artefato, feito para ser visto, que tem agência e consequências políticas. Em particular nos estudos urbanos, esse resultado cada vez mais complexo considera os aspetos relativos à recepção das imagens. Na época da fluidez e da liquidez é mais complexo investigar a audiência dos audiovisuais. A partir dessa observação será depois possível contextualizar reflexões mais amplas sobre a circulação do audiovisual. Como reporta Herzfeld:
“Vision has practical consequences; it is our ethical predilections that will determine, at least to some extent, whether these will benefit the people with whom we work or reproduce the rigid antinomies through which privilege maintains the structural status quo. Among those barriers, perhaps the most dangerous is that which separates our academic preoccupations from the world in which they are embedded.” (HERZFELD: 330).
A necessidade de tornar complexa a análise dos múltiplos contatos com o objeto audiovisual que circula, complica e problematiza também a prática da autoetnografia da produção, que todavia é aqui pensada como um ponto de partida para qualquer reflexão mais ampla e menos indexical, em sentido peirceano, em relação ao contexto de produção das imagens.
Claramente, como a história da Antropologia Visual demonstra, as consequências de uma produção documentária têm que ser analisadas a longo prazo. Mas a importância da utilização da ferramenta antropológica no momento da produção e nas fases sucessivas da divulgação é bem evidenciada neste parcial percurso auto etnográfico, prática que teria que ser ligada a qualquer produção audiovisual. A área das representações visuais, nesse momento histórico, parece ser cada vez mais um campo de batalha relevante pelos processos políticos e sociais, e só por meio de uma interconexão entre contexto de realização e imaginário global onde as imagens são jogadas, será possível propor uma conscientização ética do universo da produção.
REFERÊNCIAS.
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COPLAN, David. 1983. “Popular Culture and Performance in Africa”, Critical Arts, 3, 1: 1 - 9.
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7.2 REFERÊNCIAS DE FILMES
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ROUCH, Jean, MORIN, Edgar. 1960.Chronique d'un été.
VAILATI, Alex, 2012. Slow Walker.
[1] Bantu é uma palavra que em várias línguas significa humanidade. Na retórica racista do apartheid esta era traduzida pela palavra “negro” e geralmente era utilizada em sentido depreciativo.