Como pensar e fazer pensar um arquivo fotográfico: uma dupla experiência



Etienne Samain [!]

com a participação de Fabiana Bruno [!]


Resumo

O que se pretende fazer de um arquivo visual antropológico, quais serão seus destinos? Para quem, como e porquê?
O presente ensaio explora duas experiências distintas de imersão num único arquivo fotográfico (sobre os índios Kamayurá do Alto Xingu). A primeira, quando uma pesquisadora, na sua condição de interpretante, se propõe a conviver com o arquivo, busca interrogar as fotografias, compactuar, escolher e montá-las. A segunda, quando o próprio produtor das imagens, partindo do exame das pranchas fotográficas, sente a necessidade de voltar aos seus diários de campo, de relê-los, antes de retornar ao exame das fotografias ampliadas de seu arquivo. O leitor poderá, deste modo, se deparar ainda com dois conjuntos de fotografias escolhidas, trocadas e comentadas por cada um dos parceiros.

Palavras-chave: Arquivo visual; Índios Kamayurá; Textos vs imagens; Antropologia visual.




How to think and to think a photographic archive: a double experience

Abstract

What do someone intend to do with an anthropological visual archive? Which will be their end? To whom, how e why? The present essay focus on two different experiences of immersion in a photographical archive (about Kamayurá Indians from high Xingu). The first one, when a woman researcher, in her condition of comprehending, puts herself upon the archive, making questions for the photos, choosing and building it. The second one, when the producer of the images, starting by the study of the photos, feels that should come back to the studying of the super sized photos. The lector could, on that way, face with two group of selected photographies, changed and commented by each one of the partners.

Keywords: Visual Archive; Kamayurá Indians; Texts vs. Images; Visual Anthropology.




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Como pensar e fazer pensar um arquivo fotográfico: uma dupla experiência



Etienne Samain [!]

com a participação de Fabiana Bruno [!]

Para nos situar

O presente ensaio apresenta dois percursos em torno de um arquivo. De um lado, o de uma pesquisadora (Fabiana Bruno) que, em 2011, escolhia como temática de seu Pós Doutorado o estudo[1] de um arquivo de fotografias [sobre os índios Kamayurá do alto Xingu] realizadas quase quatro décadas antes por um antropólogo, produtor desse arquivo (Etienne Samain).

Num primeiro momento, será interessante seguir o que foi o percurso geral de cada um dos cúmplices sabendo que a pesquisadora debruçava-se unicamente sobre um arquivo fotográfico desconhecido, quando o segundo, além de produtor das fotografias, realizava um percurso paralelo nas suas fotografias e nos seus diários de campo.

Depois, o leitor poderá se deparar com dois conjuntos de fotografias escolhidas e trocadas por cada um dos parceiros. O primeiro conjunto (série A, reunindo 07 fotografias) representa um kit de fotografias escolhidas e comentadas pela pesquisadora em função de critérios afetivos e estéticos pessoais. Essas fotografias foram logo submetidas ao produtor para que, por sua vez, as identificassem e as comentassem O segundo bloco (série B, agrupando 05 fotografias) representa, desta vez, uma escolha temática de fotografias que o produtor submeteu à pesquisadora sem lhe dar de antemão as razões e os comentários sobre o conjunto. Significa que, sem conhecer os comentários do produtor, a pesquisadora tinha já elaborado os seus.

Além das escolhas visuais de cada parceiro, será particularmente relevante fazer uma leitura sinótica e comparativa de seus comentários respectivos.

Para concluir, apresentaremos algumas reflexões referentes a essa dupla experiência.

Percurso da Pesquisadora (Fabiana Bruno)

Embora as imagens fotográficas repousassem na biblioteca de seu produtor, até aquele momento - no verão de 2012 -, efetivamente ainda não tinham sido descobertas por mim. Em definitivo, um arquivo desconhecido. As imagens estavam ali no espaço de uma preciosa biblioteca de seu produtor em lugares que ele próprio as destinou.

Diante do romper o claustro do arquivo, o ato de abertura significou um gesto de ruptura da espera a partir do qual, passei a, lentamente, ir “devorando” com os olhos o conteúdo, as coisas vivas que habitaram aquele arquivo em um intervalo de quase quatro décadas. Cada volume aberto, exposto, repercutia como um pequeno susto, sobressalto de surpresa. Neste processo, realizado conjuntamente com o produtor das imagens, íamos deparando com algumas revelações e muitos reencontros. Estava tudo lá frente aos nossos olhos, coisas vivas a nos fitar e nós a elas.

Era como se nos interrogassem aquelas imagens mudas e gritantes. As fotografias, os diários de campo preenchidos com letras bem miúdas, as cartas, os documentos, as pequenas anotações. Toda a escrita. Toda a imagem. O tom sépia do tempo, impregnando alguns detalhes, tudo era imantado pelo tempo. A letra miúda de Etienne Samain documentada nas mais de 700 páginas dos diários de campo, os desenhos de campo, dentre os quais, alguns produzidos pelos índios, outros pelo próprio autor. Havia ainda farta documentação de pesquisa, notadamente pastas, onde estavam guardadas mais propriamente tudo o que poderia se referir ao arquivo de fotografias: negativos, contatos fotográficos, diapositivos, ampliações de diferentes formatos, cópias, testes. Cerca de 500 fotografias, capturadas em filmes de 35 milímetros colorido, ISO 100, quase todas dispostas em contatos fotográficos, tendo uma pequena parte registrada em branco e preto e cerca de 70 diapositivos (utilizados para realização de palestras sobre os índios, em escolas).

Havia uma parcela da produção fotográfica ampliada em papel fotográfico de diferentes formatos, tais como 8x5 cm; 10x15cm; 13x18 cm; 20x25cm e 30x40 cm e muitas ampliações-testes (de cores; contraste), outras guardadas em envelopes com anotações “fotografias não muito boas”. Essas ampliações escolhidas a partir dos copiões, tinham como destinos, ora a publicação de Moroneta Kamayurá (Samain, 1991), ora a montagem de exposições.

As imagens guardavam a sequência numérica dos registros (permitindo uma recomposição cronológica do percurso fotográfico), quando os diários estavam organizados por datas com anotações (geralmente) em língua francesa. Muitas páginas remetiam, desta forma, a episódios que podiam ser encontrados nos registros fotográficos.

Por não conhecer os detalhes do contexto e da memória dessas fotografias, devia abrir meu olhar para essas fotografias de arquivo com o propósito de pensar quais seriam o tipo de questionamentos que as imagens suscitavam?  Quais perguntas seriam relevantes a um arquivo na tentativa de descobrir fotografias desconhecidas? Como elencar de maneira a desvendar o que se vê, entrever as dificuldades, as pistas, as limitações? Como recompor uma memória em imagens?

Na condição de pesquisadora ‘interpretante’ – sem prévias entrevistas ou conhecimento de outras anotações que seu produtor tivesse realizado em torno dessas mesmas imagens –, me propus a conviver com as fotografias. Passei algumas semanas, sistematicamente, vendo-as, numa sequência imposta pelos próprios copiões. Tinha como repertório a situação de quem sabia que Etienne Samain tinha estado por duas vezes com os índios Kamayurá. Pretendia vivenciar dessa maneira a experiência de conhecer melhor o que representava entrar num arquivo de fotografias e procurar evidenciar as questões que levantava.

Era certo que esses 09 contatos fotográficos guardavam já em sua materialidade, vestígios de um tempo, de técnicas operacionais e de escolhas de seu produtor – em termos de luz, repetição, eleição de elementos visuais – numa ordem de tomada. Vestígios que podiam testemunhar de outra maneira o que eu poderia vir a descobrir.

Eis o desafio inicial – lançar questões às fotografias encontradas no arquivo sobre os índios Kamayurá na direção do que o arquivo me movia a desejar saber, adivinhar, ou imaginar pelo visível.

Procurei descobrir o que me inquietava diante das imagens, o que determinadas pranchas evocavam em mim. Comecei apenas vendo, simplesmente fitando, examinando uma a uma, contato após contato, da mesma maneira quando nos propomos a ler um livro, que nos motiva a simplesmente ler seguidamente, página após página, para sem outra preocupação deixar as palavras agirem e nos fazerem sonhar no futuro.

Algumas fotografias, ainda sem saber o porquê, me tocavam profundamente, uma experiência afetiva, que não sabia ainda onde poderia me conduzir. Logo no copião de avulsas, um retrato emite um sinal, um estalo. Uma criança que sorri, timidamente, segurando uma balão nas cores verde-amarela, que tenta encher com a boca. Um bebê que tem um pássaro verde pousado guardando a sua cabeça. Sem procurar outras razões para explicar, prosseguia. Assim, com as imagens, deixei-as agir e reaparecer para mim, como pequenos lampejos de vagalumes, que podem surgir quase inesperadamente quando menos esperamos. As imagens ainda eram para mim sensações e emoções.

Prosseguindo a minha experiência, resolvi dar uma outra atenção ao modo de ver, objetivando na forma escrita, o que eu poderia efetivamente reconhecer como dado visual, para além de um reflexo intuitivo e emocional. Logo, o arquivo de fotografias Kamayurá se apresentava com uma característica marcante, a saber: uma forte presença de retratos, planos curtos, closes de rostos, de personagens, com os quais o antropólogo conviveu e conseguiu estabelecer uma proximidade, uma intimidade. São poses, mas nem sempre encenadas. Existe uma precisão gestual, um olhar marcante, uma beleza natural. Não são imagens que exaltam um índio romântico, selvagem ou exótico, mas cenas de uma convivência quase íntima, pequenos flagrantes ou cenas partilhadas, que revelam um modo de vida naturalmente integrado ao seu espaço cotidiano. As imagens eram também uma documentação, uma memória, uma revelação.

Aproximando-me de certas fotografias percebi que elas me desafiavam a desvendá-las. Mas como inquiri-las numa questão objetiva? Reconheci que as fotografias de um arquivo neste estágio me ofereciam mais perguntas que respostas visuais sobre os índios Kamayurá. Todavia, faltavam-me palavras para objetivar uma questão. A escrita não parecia dar conta, naquele momento, para formular questões para as imagens. As anotações pareciam sempre insuficientes, superficiais e primárias. O que fazer diante disso?

Foi então que resolvi avançar, diante desse bloqueio, sem ainda voltar-me para questões dirigidas ao produtor, deixando as próprias fotografias, por mais tempo, viajarem pelos labirintos da memória e da imaginação. Com o arquivo aberto e diante de suas 500 imagens era necessário ir atrás do “acontecimento visual”, “daquilo que se sustenta na imagem”, “das hesitações e silêncios”. Para Michel Foucault (1969/2012), saber é separar. Didi-Huberman, acrescenta que saber é saber separar para montar depois. “Para montar, é preciso, em primeiro lugar cortar e em seguida juntar”.

Decidia, portanto, que era preciso escolher.  Comecei olhando para todo o arquivo. Convencia-me de que escolher, era antes de tudo romper com a ideia de uma “imagem integral” do arquivo, para assumir essencialmente a condição de uma “imagem lacunar”[2], como pequenos pedaços e resquícios, as perdas que todo arquivo naturalmente pressupõe em relação aos pressupostos de verdade ou de absolutizar o real.

Sem uma ordem, procurava neste momento, des-agrupar as fotografias de suas sequências mostradas pelos contatos fotográficos. Procurava vê-las independentes, como peças visuais, soltas, sobre uma mesa. Imprimi cada uma delas e fui separando aquelas que já tinham se apresentado na experiência desenvolvida até aqui como ‘inquietantes’ para mim. Desarticulando, assim, cada uma, fui criando outros grandes blocos, para logo em seguida, reencontrá-las em pequenas séries, novamente como uma questão. Criar essas pequenas séries significava integrar várias imagens, dispostas lado-a-lado, formando uma montagem elementar, que pressupunha isolar ou ré-enquadrar escolhas, numa sequência.

Sim, pensava em criar, pelas imagens, uma pequena fórmula, uma sentença ainda que não-traduzível em palavras, mas que se apresentasse ao produtor como uma pergunta visualmente formulada. Não conseguia expressar ou enunciar de uma só vez, uma única imagem-questão. Mas, talvez, associando uma imagem à outra, era possível criar um diálogo entre uma sequência dada às fotografias. Narrar uma inquietação. Evidenciar o suspense das imagens.

Restava-me saber qual a percepção do produtor diante da minha formulação. Restava-me saber ainda como uma imagem, ou no caso, várias imagens, tinham o poder de nos dar a ver, para em seguida questionar, em silêncio, sem palavras, e agitar a enunciação de uma memória? Ainda que não houvesse respostas, as séries seriam destinadas como questões a um outro olhar, neste caso de quem as produziu e as guardou durante 36 anos, para, quem sabe, assimilar outras questões sem respostas.

Terminei por montar cinco pequenas séries fotográficas. Vendo-as como uma questão silenciosa assumia também que seguramente havia coisas que não podia ver no arquivo.

Desta maneira, tomei como referência em minhas escolhas aquilo que causava maior estranhamento ou se tornava mais difícil de decifrar. Anotei para mim, como numa espécie de sigilo, sem revelar de antemão ao produtor, reiterando no pacto realizado, o que ofereciam como inquietações para, quem sabe, desvendar mais tarde o que podia nascer como fruto dessa experiência, quase ingênua, um jogo, um mecanismo, “simples e honesto”, e por isso mesmo capaz de evidenciar uma natureza estética e epistemológica, e dar forma, a partir de agora, a um conjunto de questões que nasceriam dessa dupla experiência revelada.

As cinco séries de imagens [veremos em breve uma delas: Série A, reunindo 07 fotografias] foram encaminhadas, silenciosamente, ao produtor que as colocou, como se fossem peões sobre um tabuleiro, espalhados sobre a sua mesa de trabalho. O produtor tomaria o tempo, então, para pensá-las, comentá-las e devolvê-las como sendo sua resposta.

Percurso do Produtor (Etienne Samain)

Tinha sugerido à Fabiana uma outra experiência. Visto que sua aproximação das imagens do arquivo pertencia a uma outra ordem cognitiva que a minha, enquanto autor das próprias fotografias, iria lhe submeter desta vez conjuntos de fotografias que escolheria [Elaborarei duas séries de imagens. Veremos em breve uma delas: Série B, reunindo 05 fotografias]. Foi combinado que não lhe comunicaria, de antemão, as motivações ou razões dessas escolhas. Seriam desvendadas após que ela as tivesse observadas e comentadas por escrito. Somente, então, revelaria meus propósitos.

Torna-se necessário, deste modo, precisar as etapas que antecederam à minha própria oferta.

O leitor haverá de saber que, ao “reencontrar” as (aproximadamente) 500 fotografias e os diários de duas expedições realizadas no meio dos índios Kamayurá (1977-1978), deixei me conduzir pelo prazer de uma experiência nunca vivida e por uma necessidade, uma espécie de imperativo que logo esclareço.

Não queria, debruçando-me pela primeira vez, 36 anos depois, sobre um material verbo-visual (diários de campo e fotografias), referente a um intenso passado, deixar-me engolir pela precisão da escrita (dos meus diários). Desejava como um flâneur refazer uma viagem descompromissada e abandonada ao meu imaginário. Não evidentemente uma viagem que não teria sido feita ou uma aventura na qual procuraria, hoje, fantasmas. Queria, sim, me deixar capturar e cativar por esses movimentos desordenados das imagens. Procurar rever com o recuo do tempo, à distância, sob outro prisma e, talvez, outros ângulos o que não podia ou não tinha conseguido entrever na época. Deixar o estranhamento me habitar novamente. Minha aventura dispensava todo pré-texto.

Numa pasta de cor vermelha, tinha guardado os negativos dos filmes e, por felicidade, os “copiões”, isto é, 09 pranchas contatos (de 24 e, geralmente, de 36 fotogramas, 3x4, cores). Redescobrirei mais tarde umas 70 slides.

Foi a partir dessas pranchas que empreendi minha viagem visual. Não tinha pressa. Passei duas semanas a perscrutar, uma após outra, essas pranchas e, nelas, as minúsculas imagens, todas de mesmo formato, ordenadas no tempo e que se sucediam na horizontalidade do suporte. Olhava por longo tempo a prancha que não somente me oferecia uma visão de conjunto mas que me permitia também realizar, dentro dela, percursos dos mais diversos.  Reencontrava um tempo passado, um tempo vivido, um tempo partilhado com pessoas, lugares, modos de viver, expectativas, descobertas, emoções, paixões e centenas de outras “cores” humanas. Sem outro planejamento, transcrevia sobre fichas, impressões, questões, reflexões que esses mergulhos sucessivos nas pranchas levantavam e associavam.

Ao rever essas pranchas, não tinha, no entanto, a impressão de ir ao encontro de meras lembranças. Existiam, evidentemente, nas fotografias dessas pranchas “recordações”, “evocações” e “reminiscências”, mas sobretudo “memórias” soterradas. Memórias encalhadas (como barcos naufragados no fundo do mar) e adormecidas (como certos animais quando hibernam) que, muito lentamente, acordavam e se animavam, renasciam e ressurgiam.

Nômade dentro do meu imaginário, descobria que viajava também na minha memória. Essa última se tornava cada vez mais imperativa. Me pedia ou, melhor, me ordenava, antes de rever detalhadamente o conjunto das fotografias ampliadas, de chegar a contextualizá-las com um máximo de precisão. Precisava dar ao trabalho da imaginação e da memória algumas outras fundações. Empreendi, nessas condições, a leitura dos diários.

São 04 diários (no formato escolar de 14X20, de escrita miúda) que, para as duas expedições, perfazem um total de 759 páginas.

Como muitos diários, são anotações e comentários sobre os acontecimentos ocorridos no dia. São, também, pequenas inscrições desconexas ou observações não domesticadas. São sobretudo as armazéns e os reservatórios de tudo aquilo que conseguimos esquecer. Não fiquei curioso de me reler e, sim, tocado de me descobrir nu, cru, vivo, trinta e seis anos antes. Sobretudo, desconcertado diante do amontoamento de fatos, de pessoas, de situações que tinha - literalmente falando - perdido de vista.

Por causa do tempo decorrido, os cadernos de campo com seus registros diários tinham, é verdade, o sabor de um vinho milésimo precisamente por ter repousado no tempo e amadurecido com o tempo, salvaguardando tantos dados esquecidos.

Ao penetrar na escrita, na concisão das palavras, nas suas capacidades enunciativas, senti num primeiro momento que as imagens me abandonavam ou, melhor dizendo, que poderia dispensá-las. O diário, com sua implacável cronologia, fazia remontar de um buraco cego fatos e situações, episódios precisos que tinham participado da minha aventura.

Sentia que não somente retomava pé numa realidade concreta, em estado contínuo de transformação, mas que, também, graças a esses textos podia desenrolar um longo tecido de tempo e não apenas instantâneos, fragmentos de tempo suspensos.

Mas ao mesmo tempo, por serem carregados de assuntos tão diversos, de minúcias, de reflexões apenas esboçadas, o trabalho de rememoração ao qual os diários me obrigavam, era exigente e cansativo. A leitura de todas essas anotações me esgotava ao mesmo tempo que me embebia.  Com elas, descobria-me semelhante a uma esponja quando, gota após gota, ela começa a encher e se dilatar. Lenta impregnação que, então, fecunda os silêncios das palavras escritas ao abri-las a novos questionamentos.

Transcrevi, desse modo, sobre outras fichas, minhas “impressões” de leitura. Tornaram-se, progressivamente e numa ordenação alfabética, os itens de um fichário temático com dezenas de entradas, cada uma remetendo às páginas precisas dos diários.

 

Paradoxalmente, ao longo das páginas do diário, o nome de uma pessoa, um grito de festa, a narração de uma pescaria com cipó ou a descrição da construção de uma oca retomavam o caminho das imagens. As palavras se metamorfoseavam, transfiguravam-se de repente em pequenos filmes, espécies de fitas luminosas aos contornos fluidos. Imagens passageiras, evanescentes, que emergiam das próprias palavras. Debaixo das palavras, viviam imagens e essas imagens, para assim dizer, furavam as palavras que as aprisionavam.

Como já disse, tinha observado num primeiro momento e por necessidade, boa parte das quase 500 fotografias realizadas no meio dos Kamayurá a partir de pranchas-contatos. Tinha contemplado essas figuras um pouco como se olharia uma constelação, com sua miríade de estrelas. Corria no meio das estrelas em todas as direções.

Tinha agora diante dos olhos o conjunto ordenado cronologicamente de quase todas as fotografias que foram realizadas no decorrer das duas expedições no meio dos Kamayurá, quando estudava sua mitologia. Ampliadas desta vez, as fotos ofereciam outras perspectivas ao meu olhar. Queria rever essas imagens, uma por uma. Desejava abri-las, desdobrá-las, interrogá-las, deixá-las pensar entre elas e comigo. Foi o que fiz.

Para não multiplicar os temas potencialmente presentes nessas fotografias e tendo como pano de fundo o fichário temático que acabava de ter sido elaborado a partir do texto dos diários, pensei que seria profícuo estabelecer previamente um conjunto de palavras-chave a partir das quais se constituiriam progressivamente pequenos pacotes de fotografias aparentadas. Havia o risco, é verdade, de realizar classificações demasiadamente antropológicas ou fechadas, o que conduziria a enclausurar e silenciar as fotografias dentro de caixinhas, privando-as dos diálogos que lhes são inerentes. Tinha consciência deste perigo.

As palavras-chave foram, no ponto de partida, as seguintes: “Casais”; “Crianças”;” Feminino”;” Gestos e emoções”; “Espaços e habitações”; “Índios, animais, natureza”; “Índios x Brancos”;” Masculino”;” Mitos”; “Pajelança”; “Pensar”;” Pessoas (nomes de)”; “Rituais e festas”; “Trabalho de campo”.

O número de palavras-chave não aumentou. Apenas elas se desdobraram, as vezes, em subitens como por exemplo: “Crianças” [03 subitens:  Jogos; Meninas e meninos; Rostos]; “Masculino” [04 subitens: “Atividades masculinas”; “Beleza-pinturas corporais”; “Companheiros-yìrìp”; “Homem e criança”] etc., de tal modo que uma mesma fotografia podia se encontrar sob várias palavras-chave.

Duas séries de imagens

Esse duplo percurso e as informações metodológicas nelas contidas servirão agora a entender como (e por que caminhos) se deram a escolha de duas séries de fotografias (Séries A e B) e os respectivos dizeres e comentários de ambas as partes

Série A: 7 fotografias oferecidas por Fabiana Bruno

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Desvelar da Pesquisadora

 

No arquivo a grande maioria das fotografias é do tipo retrato. Interesso-me por eles: são belos, tecnicamente bem produzidos, me tocam, me emocionam. Os retratos não representam somente uma questão formal. As fotografias revelam, parece-me um tipo de convivência que o produtor procura estabelecer com os índios. Uma relação afetuosa e de certa forma traduzida com alegria pelos Kamayurá. Fui notando, no entanto um tipo de recorrência, ou afinidade, estética e emocional, para mim, entre elas. Um elemento muito presente era o sorriso, que aliás remete a um vínculo forte com a própria cultura da fotografia (ou com aquilo que se espera encontrar nela: “hoje”, aliás, existem pequenas câmeras com detector de sorriso) e a ideia – a ilusão que oferece toda fotografia – a um momento “real” de felicidade, era um elemento presente em muito retratos. As crianças sorridentes em situações diversas em cima das árvores, no banho da lagoa; o jovem alegre de posse da caça de um macaco; a jovem mãe muito alegre com o seu bebê no colo e a composição de uma “família”, um casal e o filho. Procurei escolhê-los e organizá-los numa sequência, sem muitas pretensões a não ser que eles me provocaram a querer saber mais sobre o processo de produção dessas fotografias e sobre as memórias do produtor sobre esses momentos que pareciam espalhar alegria. Quando fotografava? Como se aproximava dos índios com a câmera? O que procurava mostra nesses registros fotográficos dos Kamayurá? Será que se lembra do momento em que viu pela primeira vez os resultados dessas fotografias revelada? E como essas imagens hoje afloram a memória do produtor? Será que uma dessas fotografias o afeta mais do que outras?

Desvelar do Produtor

Lembro-me que, ao me submeter essa primeira série de 07 fotografias (todas no formato paisagem), Fabiana foi clara quanto à motivação de suas escolhas. Em todas elas, dizia, havia a marca de um sorriso ou até de um riso. Os Kamayurá sorriem. Cantam e dançam. Choram, escondidos. Não gritam. Não se beijam em público e nunca homem e mulher dançam face a face. Revendo essas fotografias, descubro que elas não são reportagens, menos ainda procuras estetizantes. Não tinha ido nos Kamayurá para fazer fotografias e, sim, para recolher narrativas míticas. Tinha pouca película e utilizei a máquina fotográfica, esporadicamente e somente dez dias após minha chegada no meio deles. Estou deste modo tocado por essa naturalidade que emana das fotografias mesmo se a máquina e eu fomos seus cúmplices. Existem nelas as marcas de uma naturalidade, de uma reciprocidade tácita, de uma confiança já dada. O riso, os sorrisos escondem um acordo, uma conivência. São piscadelas trocadas.

1) Um dos três meninos que subiram na árvore anuncia claramente seu espetáculo.

2) Na beirada arenosa da lagoa de Ipavu ("Águas grandes”) que identifica e delimita o território Kamayurá, uma menina e suas amigas aproveitam minha ida para disputar entre elas um sabonete que, apenas oferecido, desaparecia em tempo recorde no meio dos gritos e dos risos.

3) Na estação das chuvas, no tempo da ausência de comida, esse Kamayurá voltava, molhado e gelificado, no final da tarde, com sua espingarda e um macaco. Os Kamayurá não comem nenhum mamífero a não ser, nessa época de penúria, quando vão à procura desse tipo de animal, o mais próximo do homem.  

 Pedi-lhe de fazer a pose para registrar seu trunfo. Nessa noite o macaco (sem ter sido sequer aberto) foi colocado sobre brasas e lentamente assado dentro da maloca. O cheiro dos pelos queimados tinha parcialmente fechado meu estomago e ao vê-lo se tornar cada vez mais parecido a nós, tinha perdido o apetite. Ele foi partilhado, cada um não sabendo se comia um pedaço de carne duríssima ou um pedacinho de carvão. Não apreciei o banquete.

4) Auto’um sabe que está fotografada. Ela ri, nervosa, reservada, tímida e contente. Mayuru, seu primeiro filho, é claramente perplexo ou assustado.

5) Eis ainda Auto ‘um, bela, simplesmente feliz.

6) Kotok (esposo de Auto’um), hoje chefe dos Kamayurá e seu companheiro (Yìrìp). Tinha pedido de fotografá-los.

7) Voltando da lagoa (no final da tarde), ia ao encontro desse casal que acabava de tomar banho com sua criança. Lhes pedi de poder fotografá-los. Eles sorriem com razão já que a pose que lhes sugeri inconscientemente não era nada xinguäna.

Série B: 5 fotografias oferecidas por Etienne Samain

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Desvelar do Produtor

[Sob a palavra-chave “Índios x brancos”, subitem “diversos”, encontram-se 54 fotografias. Escolhi 05 dentre elas, numeradas de 1 a 5]

1) Ela é Zipe (corruptela de Jipe). Os Kamayurá conheciam bem o Toyota de cor azul da Funai [Fundação Nacional do Índio]. O nome da menina é o próprio mito. Mostra como é irreversível a presença do caraíba na história do índio.

Logo após as bolas de encher com cores verde-amarelas (que levava na época), o Alto Xingu foi o palco de várias filmagens (Aritana, Kwarup etc.). Hoje existem captadores de energia solar, antena de TV, Internet, motocicletas e voadeiras. Os Kamayurá continuam andando nus na floresta e suas bicicletas possuem cadeados.

2) Aplicado, Kavé (índio Kajabi fugitivo, que trabalhava na casa de Takumã, chefe Kamayurá) traça alguns números sobre um caderno que lhe tinha dado. Queria aprender a “calcular”. Pés nus sobre a terra batida, sua sombra parece crescer ao seu lado.

3) Os Kamayurá não possuem um termo especifico para conotar o que glosamos por “mito” ou ainda, por “história”, “estória”. Utilizam a palavra Moroneta. Os moronetas são, à semelhança das fotografias, como espelhos que refletem para a comunidade presente, não somente os modelos e os arquétipos passados, mas uma realidade de uma outra ordem do que o real no qual mergulham os homens. 

4) O chefe da tribo Waurá (Malakuyawá) e seu neto estão sentados sobre um banco de madeira com dupla cabeça de urubu-rei, o pássaro intermediário entre o mundo dos espíritos e o mundo dos humanos. Assistiam a uma performance do Balé Stagium (São Paulo), convidado por Olímpio Serra, o então chefe da Funai, para que apresente às diversas comunidades indígenas reunidas por três dias no Posto Leonardo, um espetáculo de “brancos” (e da vida cotidiana do caraíba). Um desejo de troca sem dúvida. Vi, neste exato evento, o dinheiro circular pela primeira vez na comunidade Kamayurá e a gripe se espalhar por várias semanas.

5) Dois rostos, um contraste e questões. Uma fotografia (desfocada) de dois índios Kamayurá, pintados antes de participar de um ritual diário (Tauwarana). Uma fotografia que reencontrei por acaso e que me questiona por causa da bandeira verde-amarela e de um registro não escrito, a saber, “Ordem e Progresso”.

Desvendar da Pesquisadora

Pela força do conjunto, de vínculo por afinidade, as cinco fotografias parecem apontar para uma temática comum: a aproximação do índio Kamayurá com elementos de uma outra cultura, de outra sociedade, a nossa. Numa sequência de três fotografias horizontalizadas (1,2 e 3), vemos uma criança soprar um balão de borracha; um jovem índio (pertencendo à uma sociedade ágrafa) sentado, vestindo um calção, que parece exercitar a escrita; e um índio que se rende a uma contemplação do seu reflexo num pedaço de espelho (artefato típico da sociedade dita civilizada), aliás, numa fotografia mais conhecida para mim (por ser a primeira a constar do livro Moroneta Kamayurá). Em seguida, uma fotografia, agora vertical (foto 4) que revela possivelmente pai e filho Kamayurá que cedem (troca de lugares) o espaço central da aldeia para assistir, sentados num banco com decorações e motivos típicos das aldeias do Alto-Xingu, de mais longe, a um espetáculo teatralizado por visitantes da aldeia. E por fim, a última fotografia (foto 5) mostra dois índios, um deles exibindo, entre os seus adereços (códigos culturais e pinturas corporais típicas), uma representação da bandeira brasileira (numa releitura feita por ele, provavelmente).

A série de fotografias coloca em questão, para mim, o olhar do Kamayurá, que se mistura ao universo e às expressões de uma outra sociedade, a nossa, ao mesmo tempo em que revela as próprias questões evidenciadas pelo olhar do produtor/ autor das imagens diante das relações e das diferenças entre culturas. Restaria, no entanto, procurar saber mais, desvendar melhor como essas cenas apareceram, surpreenderam as lentes de Etienne Samain? O que teria a revelar sobre os seu próprio olhar. Procurava compreender essa cultura e seus mitos? Para depois, questionar também, como essas naturezas diversas entre culturas trabalharam, sobreviveram e se revelaram, mais de 36 anos depois?

ALGUMAS BREVES CONCLUSÕES

São duas experiências distintas. A primeira, quando a pesquisadora, na sua condição de interpretante se propõe a conviver com um arquivo fotográfico, busca interrogar as fotografias, compactuar, escolher e montá-las A segunda, quando o próprio produtor das imagens, partindo do exame das pranchas fotográficas, sente a necessidade de voltar aos seus diários de campo, de relê-los, antes de retornar ao exame das fotografias ampliadas de seu arquivo

Fabiana Bruno toma como prerrogativa fundamental a de não tratar apenas de “pensar sobre um arquivo”, mas “fazer pensar um arquivo” de imagens. Aceita o desafio de efetivamente criar mecanismos originais de trabalho com as imagens na direção de uma anamnese de sua própria experiência visual.  Procura desse modo “interrogar e fazer pensar um arquivo à luz do seu próprio silêncio” o que significa, em última instância, para ela, “estar tomado pela atmosfera de expressões e sentidos que são colocados diante do olhar e escutar as imagens”.

Seduzido pelo curioso apelo das imagens, o produtor empreende, por sua vez, uma lenta descida no coração de suas imagens. Com elas, ele vai evidentemente ao encontro de lembranças, e de outras reminiscências que afloram sem, todavia, o satisfazer. Não somente as imagens permanecem mudas mas, no caso, não chegam a recordar necessariamente o contexto dos registros, menos ainda os motivos e as razões da emergência das fotografias.  Esse mutismo provoca a memória que exige uma resposta à qual o retorno ao texto dos diários oferece uma saída.

Entre textos e imagens, a cumplicidade tanto como a reciprocidade são patentes, necessárias e decisivas. É bom lembrar o que Gombrich escrevia: “Se considerarmos a comunicação do ponto de vista privilegiado da linguagem, vamos descobrir que a imagem visual é sem igual no que diz respeito a sua capacidade de despertar, que sua utilização para fins expressivos é problemática e que, reduzida a si-mesma, a possibilidade de se igualar à função enunciativa da linguagem lhe falta radicalmente (Gombrich, 1983:323).

Importará, assim, descobrir melhor ainda as complexas gramáticas do verbal e do visual, quando declinam suas singulares conjugações.

 A quem se arriscará mergulhar num arquivo antropológico desconhecido, sugiro esses questionamentos preliminares:

- O que se pretende fazer do arquivo, quais serão seus destinos? Para quem, como e porquê?

- De que (textos, imagens, objetos...) o arquivo está constituído e como está organizado?

- Na ausência do próprio autor, contextualizar o arquivo: quem era seu criador, quais seus    objetivos de pesquisa com relação a outras pesquisas, na época?

- Na medida do possível, voltar às comunidades estudadas, devolver essa memória verbal e visual para que elas possam se lembrar do passado, questionar o seu presente e projetar seu futuro.

 

REFERÊNCIAS:

ABOUT, Ilsen e CHEROUX, Clément. « L'histoire par la photographie », in Études photographiques, 10 (Novembre 2001). [Em linha, desde 18 novembro 2002. URL: http://etudesphotographiques.revues.org/261. Consulta em 04 abril 2016.

ALLOA, Emmanuel (org.) Penser l’image. Dijon : Les Presses du Réel, 2011.

CERUTTI, Mauro ; FAYET Jean-François ; PORRET, Michel (orgs). Penser l’archive : Histoires d’archives - archives d’Histoire, Paris : Ed. Antipodes, 2006.

DERRIDA, Jacques. Mal d’archive. Une impression freudienne. Paris : Galilée, 1995.

FARGE, Arlette. Le goût de l’archive. Paris: Seuil, 1997. Trad. Port.: O Sabor do arquivo. São Paulo EDUSP, 2009.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. (Tradução Fátima Murad). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012 [or. Francês:1969].

GOMBRICH, Ernst. “L’image visuelle”, in L’écologie des images. Paris : Flammarion, 1983, pp. 323-349

MONTOUGA, Philippe. Des archives à l’archive. L’archivage comme processus de création artistique. Createspace Independent Publishey Platform, 2013.

SAMAIN, Etienne. Moroneta Kamayurá. Mitos e aspectos da realidade dos índios Kamayurá. Alto Xingu. Rio de Janeiro: Editora Lidadora, 1991.

VISUALIDADES, Vol.13, nº2 (Julho-Dezembro 2015). Dossiê Arquivos, memórias, afetos.

[1] Bruno, Fabiana. Poéticas das imagens desdobradas. Ante a abertura do acervo fotográfico indígena de Etienne Samain. Pós-Doutorado (sob a supervisão do Prof. Dr. Eduardo Peñuela Cañizal), com apoio da Fapesp. 2013

[2] O conceito trabalhado por Didi-Huberman faz alusão às lições de Bataille e Lacan para quem o real, por ser impossível, não existe senão manifestando-se sob a forma de pedaços, resquícios, objetos parciais