Oi. Sou Biofoto, quero contar a minha história desde meu nascimento e mesmo alguns minutos antes, é um conto muito original e divertido. Diria mesmo aventureiro e cheio de suspense que não pode deixar de ser conhecido. Visus me contou logo depois de eu ter sido "desenvolvido", o que aconteceu pouco antes daquilo que causou o meu nascimento inesperado e infeliz. Esta então é a minha reformulação dos acontecimentos com base em documentos específicos, entrevistas, e dados já armazenados, nada é deixado ao acaso ou na improvisação, está tudo registrado. Visus sustenta baseado em certos fatos empíricos, que estava sob pressão para obter um visto de residência permanente na China, após o inicial obtido em Roma (ele é um professor). Precisava trazer muitos documentos para a polícia, ao Ministério da Saúde (os mais complexos), o contrato com a universidade (até agora certo), um documento de identidade temporário, passaporte e duas fotografias (isto é, o meu Alias). No local tivemos que preencher um formulário longo, com a ajuda de Simone, um tímido aluno chinês muito bom, que fala muito bem o idioma italiano, e que teve que inventar o meu nome, uma espécie de "Máximo" em caracteres chineses. Superados todos estes testes com um profundo suspiro de alívio. A policial, eficiente, quase invisível, transcreve para o computador todos os dados, fez ainda um cyber foto de meu Visus, com aquelas máquinas que muitos escritórios pós-industriais arquivam seus "clientes". Bem, na verdade, aqui começa a parte ruim. Tudo parecia acabado, o teste final eram as fotografias, isto é Alias meu irmão-concorrente, que depois pude conhecer. A policial olha Alias, o revira, então – sempre sem olhar - diz que não está bom porque o fundo é vermelho. "Vermelho, - pergunta Visus? - mas se é a cor da República Popular? Olhe - continua para Simone que traduz - que foi feito na Universidade de Cucn, aqui perto. Nada, nem mesmo escuta. São 17h15m e às 18h00 o escritório fecha. Temos quarenta e cinco minutos de tempo, nesse momento chegou o motorista, um cara engraçado, baixinho e sempre otimista, com uma camiseta cheia de escritas que diz (sempre traduzido em chinês) “sem problemas”, ele conhece uma loja aqui perto, (e graças a Deus, penso eu, este é o momento-chave para a minha revelação...). Tudo bem... vamos para o carro e após algumas manobras semi-regulares como é de costume aqui, seguimos correndo em direção a loja. Na entrada pagamos e depois subimos até o primeiro andar, onde encontramos uma mulher sentada à espera, enigmática, rosto duro e silencioso, movimentos secos e precisos, roupas anônimas. Esta é a história registrada por Visus:
"Ela me olha e diz que eu devia molhar e pentear meus cabelos que são longos. Digo que não de imediato quando vejo um pente de plástico amarelo, perto de dois frascos com um líquido duvidoso. Após a tradução de Simone, ela balança a cabeça vigorosamente, são 17h30m, decido obedecer, pego aquele pente grande e o passo rapidamente nas laterais dos cabelos, tentando esconder os tufos atrás das orelhas. Ela contorce a boca, mas parece concordar, talvez porque o estranho líquido flutuasse no frasco. Fez com que me sentasse em um banquinho com um fundo branco, olha para mim e acena inclinando a cabeça. Ok, do outro lado, ok. Coloca algo branco em minhas mãos, com um jeito de quem não admite discussões: são como bolas de papel higiênico, e me diz que devo colocá-las atrás das orelhas e com gestos de mãos me ordena que esconda meus cabelos. Resumindo, ela quer as orelhas bem expostas, sem que meus irrequietos cabelos possam deixar “irregulares” a minha identidade. Olho para as duas bolas e o relógio e obedeço. As coloco como se fossem as hastes dos óculos para bloquear os tufos de cabelo que tinham voltado como antes. Ela olha-me satisfeita, apesar de seus traços permanecerem os mesmos, olha através do visor e depois de alguns minutos tira a foto. Bem, consegui! Não... Chegam dois outros clientes e como acontece com freqüência passam a minha frente na espera. Eu tento dizer algo, de fato, bato o dedo sobre o relógio para dizer que tenho pressa, ela me olha com piedade, como se dissesse que eu não entendo nada. Abre o computador, faz alguns ajustes na foto, ela olha para o centro, e em seguida, volta com o mouse, eu a olho como que paralisado, ela não estava satisfeita. São 17h40m, ela abre o Photoshop (que é como uma sala de cirurgia estética para mim, sem comentários...) e começa a fazer uma “operação incrível".
Volto a contar, eu Biofoto, segundo a minha experiência, a partir de meu nascimento e “revelação” - como vocês podem ler – que não foi nada fácil desde meu surgimento, que na verdade aconteceu à luz da tela com todos os meus pixels no lugar. Talvez alguém ainda “em desordem”, por ter cabelos indomáveis, mas era a minha identidade naquele momento, e eu, Biofoto, tinha que defendê-la. Como vocês podem imaginar, eu estava imóvel, de frente, colorido apenas no rosto e deitado sobre o fundo branco liso. Depois de alguns instantes senti parte do meu primeiro surgir ser roubado, um horror impotente atravessou minha pele-película em desenvolvimento, percebi que algumas características significativas foram apagadas de mim... De mim, Biofoto. Antes dos lados, perto das orelhas, e então até a parte superior da cabeça, onde – ai de mim - não eram nem mesmo muitos e não posso dizer que eu e Visus tenhamos uma grande cabeleira. Uma fúria sensorial do mouse cancelava cada cabelo em desordem, tentei me mover para evitar seu enquadramento - preciso e afiado como navalha de barbeiro – que continuou impassível a me raspar. Finalmente a mulher, de uma visão um pouco “maníaca” pela ordem identitária, parou por um instante e foi nesse momento que eu cruzei pela primeira vez com o olhar de Visus, e percebi que o desastre tinha acabado, entre mim e ele tinha-se criado um abismo psico-fotografico. Sentia que não me amava e que me recusava assim que nasci por uma culpa/falta não minha. O mouse recomeçou a deslizar pelo restante dos cabelos, deixando apenas faixas brancas, agora quase totalmente eliminados à primeira vista, primeiro direito, depois esquerda e finalmente para cima. Continuei olhando Visus que agitado, olhando para o relógio e batendo sobre ele com o dedo, virou-se para Simone, sempre educado, nada... A operação “mutação” de identidade é chegada ao fim, como num teste para o Big Brother. Ela me coloca em um CD, mas ele, Visus, quer as fotos imediatamente. Nada, devemos descer ao primeiro andar, onde acontece a minha transfiguração, que está no formato vídeo original para o formato papel, multiplicado por quatro, agora quase sem cabelos, por calvície digital, os poucos que sobraram descompostos foram finalmente eliminados. Surjo sem cores de fundo, como manda o procedimento e com as orelhas bem visíveis, ordenadas e precisas, burocraticamente perfeito. Estou contente por mim, mas também por Visus, que parece resignado e já nem sequer olha para o relógio, nem mesmo para mim... Uma segunda empregada, bem mais jovem deve fazer o trabalho final: coloca-me em algum tipo de máquina com uma longa lâmina de corte que, com precisão lenta e meticulosa divide o meu formato em quatro, eliminando o excesso branco. Finalmente eu sou único, isto é, sou um e sou quatro. A jovem parece procurar por um envelope com calma, a essa altura intervém Simone e curvando-se para agradecer me pega, me passa rapidamente a Visus, como em uma partida de rúgbi. São 17h50m, estou em um envelope, fechado, e sinto que corro junto com o motorista que nos alcança quando das escadas desce ela, sim, ela mesma, a fotógrafa, que nos corta a frente imperturbável, ela passou por mim enquanto estava nas mãos de Visus, vejo-a sorrindo feliz e triunfante, talvez até um pouco cruel, enquanto caminha a passos lentos. Após um momento de paralisia, começamos a correr e a ultrapassamos nas escadas. No carro, o motorista comete cerca de três infrações simultaneamente e arranca em direção ao escritório da polícia. São 17h55m, o último semáforo está vermelho, temos sorte, Simone me agarra, me leva, sai do carro e começa a correr em direção ao escritório, enquanto o carro refaz a manobra final para estacionar na entrada, ele com grande diplomacia - às 17h58m – me entrega, em cópia dupla, nas mãos condescendentes da policial que estava prestes a se levantar e ir embora. As outras duas minhas Biofoto estão nas mãos de Visus que nem mesmo olha para mim, parece mesmo que não quer me reconhecer e que prefere meu irmão Alias, nem bem nasci, e eu - Biofoto - já me sinto rejeitado como um Édipo da imagem negada.
Passage de guarda sol a Nanquim
MULTI-MAO
Assisto TV frequentemente todas as noites, são 57 canais, dos quais 12 da TV CCTV que são estatais (um no idioma francês, outro em inglês) e os outros que imagino sejam canais privados ou locais. A experiência de não entender nada dos diálogos, me coloca numa tentativa de compreender aproximadamente o que acontece a partir apenas das imagens que vejo. Lembro-me de que Benjamin sempre dizia que se fixamos ou escutamos com muita atenção uma língua estrangeira, após algum tempo entenderemos seu sentido; mas ele ainda tinha essa ideia de uma fase antes do colapso de Babel com uma língua originaria única, que em mim não produz nenhum efeito evocativo. O que me atraiu surgiu com força decisiva durante a mudança rápida entre os vários canais: está chegando o 60º Aniversário da Proclamação da República Popular Chinesa e diversos canais irão transmitir séries sobre a Longa Marcha e as últimas fases da guerra de Mao contra Chiang Kai Shek. Para mim o extraordinário é que existem em diferentes canais, simultaneamente, pelo menos uns dez personagens de Mao, representados por atores diferentes e que têm em geral alguns traços, características de semelhança: quem o representa não pode fazer papéis diferentes, não se trata de simplesmente representar um personagem, mas sim, de qualquer forma, de “ser” o próprio Mao. A primeira característica, (através da qual foi possível reconhecer o “primeiro Mao”) foi o cigarro, antes mesmo de seus famosos e icônicos cabelos. Segundo a lenda, ele fumava sempre com grande prazer, então, quando vi o personagem que fumava sempre acendendo um cigarro no outro, não tive dúvidas: era Mao! O melhor ator (de quem falarei adiante) deve ter estudado meticulosamente sua técnica, o prazer de colocar o cigarro entre os lábios, olhá-lo com carinho e fazê-lo deslizar entre os dedos, tragar, exalar o fumo de lado para enfatizar um conceito importante em palavras. Acender o fósforo de cima para baixo, um estilo, que para mim têm somente grandes fumadores, diferente dos improvisadores que riscam o fósforo de baixo para cima para assim acender depressa o cigarro. Sua técnica é profissional, porque o olho acompanha com sensibilidade e concentração o movimento inicial da chama que de baixo para cima iluminam o rosto e o prazer de fumar. E mais: oferecer um cigarro (ele os têm sempre) e apagá-lo num cinzeiro sempre cheio, com uma espécie de tristeza, de adeus fugaz em sua extrema brevidade, que ressurge imediatamente mais aceso e esfumaçante que antes, e finalmente, o maço é de papel e não de papelão como estão estupidamente de moda agora e – êxtase supremo – os cigarros sem filtro, traço que distingue o prazer de fumar do vício industrializado. A segunda característica é uma pequena protuberância no queixo, uma verruga, um traço do qual não me lembrava em suas clássicas imagens e que todos os personagens têm como uma marca distintiva para reconhecê-lo. A terceira é aquela de sua conhecida jaqueta, a de seu uniforme, linda (gostaria de comprá-la). Não é como aquelas que se viam nas reproduções denegridas, ao menos na Itália: um algodão grosso cor de tabaco (ainda!), de bolsos grandes, que cai bem, como dizem. Diria que depois daquela de Armani, a jaqueta de Mao é a mais elegante do mundo. Dario, comentando este ponto, me advertiu que Sun Yat Sen foi o primeiro a desenhar esta jaqueta, portanto, a concepção teria uma característica nacional-nacionalista. E última: risos e sorrisos sempre. Mao conta piadas (infelizmente para mim incompreensíveis) define uma estratégia, observa uma criança, encontra um companheiro de armas, fala com um atendente, faz um discurso formal, mas sempre e constantemente sorrindo. Um Mao humano, alegre, que transmite felicidade, bom humor, companheirismo, mais que o Mao “supremo” que mostra – isolado e solar – o caminho para as massas. Mudando rapidamente os vários canais, procuro captar as diferenças entre estes sincrônicos Multi-Mao da TV. De longe o melhor é aquele interpretado por um ator que passa no canal 1, aquele que acredito seja o mais importante, e que vi na transmissão em 1º de outubro, ou melhor, no dia ante do aniversario.
Elegante, sempre um pouco solitário, mas alegre, fuma como nenhum outro ator, um belo homem, amigo dos seus colaboradores, em primeiro lugar o grande Zhu Enlai, que reconheci mesmo antes de Mao pelo seguinte motivo: as sobrancelhas grossas e pretas. Notei quando seu rosto apareceu pela segunda ou terceira vez num close, em destaque, seus olhos sempre inteligentes e móveis, mais móveis dos que os de Mao que são finos e um pouco introvertidos; Zhu os tem largos, que penetram seja o interlocutor, que a tela. Os atores são possuídos pelos olhos de Zhu, e os carregam consigo com uma elegância superior, sutil e discreta, decidida e móvel; que somente sua aventura – política e humana – radicalmente extrema podia ter camufla-se nos olhos dos atores. Sempre gostei de Zhu, mesmo quando o lia e chamava-o de Ciu. Uma vida que só naquele período tumultuoso, entre exilados europeus, agitações políticas entre a França e a Alemanha, motins e greves insurgentes em Xangai, diplomacia firme e flexível, com todos, adesão total e fiel à linha de Mao parecia, a todos, loucura: começar a Longa Marcha para romper o cerco dos nacionalistas (e dos stalinistas que o queriam aliado de Ciank Kai Shek mesmo quando este trucidava toda uma geração de revolucionários em Xangai), e ir em direção norte para atacar os inimigos da China, mais inimigos dos nacionalistas e dos senhores da guerra: os japoneses, que tinham invadido a Manchúria e que praticavam carnificinas de uma crueldade inimagináveis, a maior foi aqui em Nanjing, o Massacre de Nanquim que passou para a história, e que o governo japonês ainda não reconhece como massacres contra a humanidade, milhares de mortos e, talvez, as 200.000 mulheres violentadas e massacradas que ainda buscam justiça. Zhu morreu poucos meses antes de Mao, se tivesse sobrevivido, governaria e talvez a China fosse diferente, mas se sabe que na história os “ses” não existem, servem somente para imaginar vários cenários e liberar a sua potencialidade, não só e tanto pelo passado, mas pelo futuro ainda possível, se houver. A quinta característica que não é só de Mao, mas de todos, comunistas e nacionalistas, generais e soldados, são os mapas. A guerra se desenvolve essencialmente sobre os mapas geo-militares. A estratégia é ali concebida. Os mapas são como caracteres chineses no papel a serem movidos em função da relação entre tática e estratégia (sobre os quais não entro com as minhas lembranças passadas). O mapa é escritura política e militar. O mapa é o território no mesmo sentido de Bateson: na visão do Mao, o mapa militar è elaborada colocando as diferencias táticas que seriam as diferencias que produzem informações pela estratégia. O mapa é o território porque o que é pensado visto e lido é transcrito nele e torna-se território de ação, o mapa é o Tao. Com olhar sutil, Mao observa o mapa com olhos aparentemente semifechados pela fumaça do cigarro, pára, diz algo que às vezes um secretário transcreve para um caderno, poderia ser uma máxima, uma poesia ou mesmo uma alternativa militar. Então, quando os outros líderes militares chegam, ele demonstra sua escolha através de curtos movimentos com o lápis que desliza sobre o mapa consumido pelo uso, se abre o debate, que geralmente é calmo e fundamentado, todos dizem algo olhando e apontando para o mapa. No final, Mao sorri, explica de novo e todos o seguem. Imagino também os espectadores que assistindo entendem suas escolhas estratégicas: atrair o inimigo para o próprio território, como se estivesse em retirada, e depois desencadear a ofensiva súbita e irresistível.
O mapa do Generalíssimo Ciang Kai Shek ao contrario, è uma espécie de delírio de onipotência do sujeito que pretende mostrar uma representação da realidade como se fosse ela mesma. É sempre muito elegante, às vezes vestido com uma longa camisa aderente tradicional, fechada até o pescoço, um tipo de “saia” ampla até os pés, bigodes finos e pretos, cabeça raspada onde sempre nascem cabelos com certa faceirice, a esposa por vezes está ao seu lado, bonita e silenciosa, é irmã da mulher de Sun Yat Sen (o primeiro presidente republicano da China), ou mesmo em um perfeito uniforme com o qual ele comparece ao encontro do Estado Maior, todos estão de pé ou sentados em uma mesa comprida, de frente a eles estão um bule e uma xícara, sempre em silêncio ou gritando Sim Senhor! (única palavra que aprendi!), em frente está um grande mapa transparente, bem mais refinado que aquele comunista. Todos os generais observam alternadamente o mapa e o “Generalíssimo”, ele fala pouco, a boca é fina, um rosto duro, impenetrável, nunca “cruel” ou “mau”, olha em sua volta em silêncio passando entre os vários oficiais, estes, também silenciosos e rígidos, em seguida sai depressa. O interessante aqui é o conflito entre um general que tenta aplicar a estratégia (fiel, a seu modo, ao “Generalíssimo”) e alguns outros generais que discordam, mas são rapidamente silenciados. Deduzo que eles tinham percebido a armadilha maoísta, mas a tática nacionalista nunca poderia mudar ou simplesmente regredir, não deixaria de perseguir o inimigo já “derrotado”. À minha maneira intuitiva, percebo que na TV- e, assim, as atuais escolhas políticas culturais – querem mostrar que mesmo os nacionalistas são chineses, e que havia bravos soldados entre eles, que o limite dos vértices militares era a ideologia. É esse limite – baseado no orgulho imensurável de um exército regular e eficiente que tinha eliminado um por um os senhores da guerra - que levará Chiang à derrota e ao exílio em Taiwan.