Identidades transgressoras: um estudo das identidades homossexuais em O Funeral das rosas, de Matsumoto



Sandra Mina Takakura [!]


Resumo

Toshio Matsumoto (1932- ) dirigiu O Funeral das Rosas (1969), um filme vanguardista, independente e experimental tendo o papel principal interpretado por “Pita”. O filme mostra o mundo homossexual em Tóquio no final da década de 1960. A narrativa se centra em um triângulo amoroso entre Leda que administra o bar gay e o dono do bar Gonda que também é traficante de drogas e Eddie, a amante de Gonda. A narrativa fílmica entrelaça com cenas de entrevistas a gay boys, discursos da União dos estudantes e performances antiguerra do grupo Zero Jigen. Esse artigo tem como objetivo estudar os vários discursos presente na produção por meio do processo que Hall descreve como decodificar os discursos que foram codificados partindo da questão da homossexualidade japonesa desde a época Tokugawa para se chegar na identidade gay boy e sua agência e representação.

Palavras-chave: Matsumoto; Zero Jigen; gay boy; Tóquio; Pós-Guerra.




Transgressive identities: a study of homosexual identities in The Funeral of roses, from Matsumoto

Abstract

Toshio Matsumoto (1932- ) directed Funeral Parade of Roses (1969), an independent and experimental avant-garde film, having as a main role “Pita”. The production shows the homosexual world in late 1960s Tokyo. The narrative is centered around a love triangle between Leda who manages a gay bar, its owner Gonda, who is also a drug dealer and Eddie, Goda’s lover. The filmic narrative intertwines scenes of interviews with gay boys, discourses of the students Union and antiwar performance by Zero Jigen. This article aims at studying the various discourses present in the production through the process Hall describes as decoding discourses that were once codified departing from the question of homosexuality in Tokugawa period Japan to draw the identity, agency and the representation of the gay boy.

Keywords: Matsumoto; Zero Jigen; Gay boy; Tokyo; Post-War.




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Identidades transgressoras: um estudo das identidades homossexuais em O Funeral das rosas, de Matsumoto



Sandra Mina Takakura [!]

INTRODUÇÃO

 

Em 1962 é fundada a Art Theater Guild (ATG) que permitiu que diretores como Nagisa Oshima e Shohei Imamura produzissem seus filmes com mais liberdade que as grandes produtoras não permitiam. Em meio a diretores independentes de filmes destaca-se Toshio Matsumoto: “[U]m homem de cultura eclético e profundamente independente, passando para trás das câmeras sem ter seguido nenhum percurso intermediário, como verdadeiro autodidata, após vários curtas experimentais.” (NOVIELLI, 2007, p. 249) O longa-metragem O Funeral das Rosas, título original em língua japonesa Bara no soretsu (1969)[1] produzido em preto e branco pela sua produtora independente Matsumoto Productions e pela Art Theater Guild é considerado uma adaptação do Édipo Rei ambientada no submundo homossexual de Tóquio onde se estima que na época vivessem cerca de “60 mil homossexuais”[2]. O filme é recortado por cenas de entrevistas de indivíduos que circulavam no submundo de Tóquio como usuários de substâncias ilícitas, homossexuais que trabalham como acompanhantes em bares noturnos. Este estudo objetiva estudar a polifonia dos discursos dos sujeitos homossexuais presente na produção. Para se realizar esse estudo foi realizado através de uma pesquisa bibliográfica partindo-se do contexto histórico de produção e mapeando-se a homossexualidade desde a época Tokugawa ao período pós-guerra em que o filme foi produzido.

 

MOMENTO DE PRODUÇÃO: O JAPÃO NO PÓS-GUERRA

 

Para se compreender uma produção, de acordo com Stuart Hall (2000), é necessário notar que a produção é um processo de codificação através da inserção de diversos discursos enquanto que a recepção envolveria um processo de decodificação desses discursos. Este artigo tentará mapear alguns desses discursos e focar na polifonia de discursos, traçado por Bakhtin (2013, p. 4) como sendo a “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, [...] vozes plenivalentes” que preenchem a tela e o espaço construído de Tóquio seja na narrativa ficcional, seja nas entrevistas.

 O filme foi produzido na década de 1960 que é vista como um período resistência dupla de aordo com Rosa (2000, p. 2-3) contra “a arte clássica japonesa muito pregada no começo do século XX”, quando o país claramente adotou um discurso de um Japão Imperialista e Nacionalista anterior à Segunda Guerra e “a cultura americana do pós-guerra” quando o país foi ocupado por tropas americanas de 1945 a 1952. Com o fim da censura imposta pelo governo americano que se instaurou em 1949 com a instituição do “Comitê de Controle da Regulamentação Ética” se estendendo até o fim da ocupação em 1952, as grandes produtoras Shochiku, Nikkatsu, Toei e Daei, que eram reguladas pelo aparato americano responsável pela implantação dos valores da cultura americana no processo de democratização passam a pregar novos valores e a fazer experimentações.  (NOVIELLI, 2007, p. 127).

Com o consumo de aparelhos televisores pelas famílias no mundo, a crise na indústria cinematográfica atinge também o Japão na década de 1960, provocando a falência do sistema de produção e de controle das grandes produtoras, que para sobreviverem passam a investir em filmes que possuem como atrativo a “violência e o sexo” (p. 216), direcionados ao público jovem. Nesta fase floresceram as produtoras independentes e a Art Theater Guild (ATG) em 1962, que começa a exibir filmes de diretores de diversos países:

 

[…] Ingmar Berman e Jean Couteau, Michelangelo Antonioni, Luis Bunuel, Federico Fellini, Alain Resnais e outros diretores reconhecidos, […] vários nomes menos famosos como os jovens directores poloneses  (Kawalerowicz, Andrzej Wajda, Andrzej Munk), a Nouvelle Vague francesa (Jean-Luc Godard, François Trufaut, também Agnes Varda e Bertrand Blier), cineastas soviéticos (Mikhail Kalatozov, Mikhail Shvejtser, Iosif Kheifits, Sergei Parajanov), jovens rebeldes como  John Cassavetes e Tony Richardson, e, não se pode esquecer, Satyajit Ray e Glauber Rocha. (DOMENIG, 2003. In: MATSUMOTO, 2006, p. 27-8, tradução nossa)[3]

 

Esse contato com vários movimentos e tendências mundiais foi crucial para a formação de uma nova consciência da história fílmica no país (DOMENIG, 2003. In: MATSUMOTO, 2006, p. 28). A ATG começa a produzir, a distribuir e a exibir filmes artes independentes como a de Nagisa Oshima, além de realizar as produções teatrais em seus espaços:

 

As primeiras apresentações no palco no Shinjuku Bunka foi a première japonesa de The Zoo Story de Edward Albee em 1º de junho de 1963, seguida de mais peças de Albee, Tennessee Williams, Samuel Beckett, Harold Pinter, LeRoi Jones, Tankred Dorst, Jean Genet, Edward Bond, Barbara Garson, e outros dramaturgos estrangeiros contemporâneos. (DOMENIG, 2003. In: MATSUMOTO, 2006, p. 31, tradução nossa)[4]

 

As produções teatrais também permitiram uma experimentação, e no palco do distrito de Shinjuku em Tóquio estreia a peça do jovem escritor Yukio Mishima. Do palco, o cinema herdou a teatralidade, além de experimentações de técnicas de “documentários”, de “cinema verité” que propunham um apagamento dos limites da realidade e da ficção (ROSA, 2000, p. 162). E, é nesse contexto efervescente que O Funeral das Rosas é produzido.

A produção mostra a ascensão do gênero de filme rosa, original em japonês pink eiga, ou pornográfico, um tipo de filme B, em cena temos o diretor Matsumoto como um diretor de filme pornô dirigindo uma cena de sexo entre Eddie e o soldado americano que retornara do Vietnã Tony, interpretado por Dom Madrid:

 

A participação de Eddie na cena de filme pornográfico, que não apenas eleva a estrutura “do complexo / da ficção" do filme, mas faz uma referência à emergência da pornografia do submundo. O diretor nessa cena é Matsumoto, que apesar de não fazer filmes do gênero, estava relacionado ao espírito de muitos da nova onda de cineastas pornográficos ou “pink”. (O’ROURKE, 2006, p. 18, tradução nossa) [5]

 

Nesse contexto o filme O Funeral das Rosas é produzido estabelecendo-se um diálogo entre a narrativa ficcional e a representação da realidade.

 

CENÁRIO POLÍTICO E IDENTIDADES

 

Essa narrativa ficcional é cortada por cenas de documentários sobre a apresentação do grupo de vanguarda Zero Jigen que organizava happenings nas ruas de Tóquio contra a guerra do Vietnã com duração total de 25 minutos. Nota-se a polifonia, ou seja, a “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, [...] vozes plenivalentes” que preenchem a tela e o espaço construído de Tóquio seja na narrativa ficcional, seja nas entrevistas (BAKHTIN, 2013, p.4). A produção inova no sentido que congrega o discurso estudantil, o discurso do protesto e o discurso acerca da questão homossexual, como sendo diferentes e ainda assim compatíveis mesmo que não se chegue a uma síntese. Muitos movimentos políticos retratados na mídia deixaram de focar na questão dos direitos e da visibilidade do homossexual, pois se pregava que haveria espaço para uma única prioridade e que não haveria espaço para outra questão. O estudo dos discursos são primordiais, pois as identidades se constituem em seu interior, inseridas em seu contexto histórico e em suas práticas:

 

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas, por estratégias e iniciativas específicas. (HALL, p. 109)

 

A identidade principalmente do gay boy é explorada e representada por meio do corte do diretor e por meio dos entrevistados que trabalham como gay boy no bairro noturno. No entanto, o processo de construção da identidade é complexo e pode envolver tanto as demandas individuais que suturam injustiças e feridas passadas que nunca se completa, ainda assim necessita-se de que é excluído para se constituir como tal:

 

 A identificação é um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco” – uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade. Como todas as práticas de significação, ela está sujeita ao “jogo” da différance. Ela obedece à lógica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a identificação opera por meio da différance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui. (HALL, P. 106)

 

O filme mostra um lado do Japão pouco conhecido, dos movimentos estudantis universitários, ou o grupo organizado chamado Zengakuren. A sociedade japonesa testemunhou confrontos estudantis em suas ruas reunindo universitários e estudantes de ensino médio contra a polícia, na década de 1960, devido à construção do aeroporto de Narita e o remanejamento da população do local (O’ROURKE, 2006). No entanto, na época que o filme foi produzido a população cansada dos protestos que não resultava em avanços sociais preferia a ideologia da paz. Em seu discurso, o estudante ressalta que a violência é resistência que leva à evolução da sociedade, uma violência não gratuita, segundo ele, justificada por códigos que operam no sentido de auxiliar a sociedade a se desenvolver.  

A personagem Eddie refugia em seu quarto um rebelde japonês ferido em um protesto e confronto com a polícia. Um estudante que protestava estava sujeito à violência e à repressão policial e era considerado “um marginal fugitivo da sociedade”, em um momento em que a sociedade japonesa não queria mais confrontos estudantis com a polícia (O’ROURKE, 2006, p. 15)[6].

 

Figura 1: Eddie e o estudante

Figura 1: Eddie e o estudante

Fontes: captura de tela, O Funeral das Rosas, (MATSUMOTO, 2006)

Figura 2: close-up do estudante

Figura 2: close-up do estudante

Fontes: captura de tela, O Funeral das Rosas, (MATSUMOTO, 2006)

 

O movimento estudantil foi influenciado pela Revolução cultural na China que acendeu os campi universitários japoneses. Alguns estudantes se posicionaram contra a construção da base militar americana em Okinawa ao sul do Japão, de onde partiram os aviões americanos para o Vietnã, resistindo contra a participação do Japão na guerra do Vietnã, um posicionamento coerente com o tratado de paz assinado pelo Japão após a Segunda Guerra Mundial em não se envolver em nenhum confronto armado:

 

Com a emergência da Revolução Cultural na China em 1966, as paixões foram infladas nos campos universitários por todo o Japão.  Durante os próximos anos, o Zengakuren fraturou e dividiu em facções com vários graus de lealdade ao Partido Comunista. O que previamente foi uma face da unidade se dispersou em várias preocupações com as bases americanas em Okinawa. Seu possível uso como uma base das operações para a expansão Americana no Vietnã implicitamente envolveria o Japão em uma ação militar, algo que fora proibido em termos desde no tratado de paz. (O’ROURKE. 2006, p. 14, tradução nossa)[7]

 

O happening era uma apresentação feita na rua sem a participação do público, que quebrava os paradigmas do teatro tradicional como o palco, e que começou a ser encenado pelas ruas de Tóquio como forma de protesto político. E, o grupo de vanguarda Zero Jigen, ou Dimensão Zero, se destaca pela sua participação em filmes com performances de gishiki ou cerimônias ritualísticas:

 

O grupo começou em Nagoya por Kato Yoshihiro e Iwata Shinichi que logo se tornaram infames pelas suas "cerimônias," como eles a chamavam. Movendo à Tóquio, suas performances foram notadas pela sua nudez e confrontos diretos com lojistas nas principais vizinhanças de Shinjuku, Ginza,e Shibuya. Enquanto geralmente ignorados ou até mesmo atacados pela crítica de arte contemporânea, Zero Jigen se encontrada regularmente nas crônicas em jornais e geralmente sob o título referindo-se por meio de “orgias” ou “festas pornôs”. Ao contrário dessa retórica inflamada, Zero Jigen criou situações que foram mais simpáticas às preocupações "ritualísticas" de muitos artistas da época, substituindo as referências abertamente políticas ou literárias com o severo uso de repetições, materiais de apoio, e uma série de movimentos intercambiáveis. (O’ROURKE, 2006, 16-17, tradução nossa)[8]

 

Zero Jigen foi ativo politicamente através de seus rituais polêmicos durante o período de 1963 e 1972. A gravação da apresentação na rua: Vietnam Hansen Koshin (Marcha contra a Guerra do Vietnã), que fora apresentada anteriormente em 1967 tem duração de 25 minutos e foi realizada em 24 de março de 1969 no distrito de Shinjuku, em Tóquio.[9] Essa gravação foi inserida na narrativa fílmica.

O câmera Suzuki gravou as cenas, participando do filme, enquanto a personagem Eddie atua na cena como espectadora.  Os homens carregam caixas brancas, que são urnas funerárias, que contém parte das cinzas de um corpo.

 

 

Figura 3: Zero Jigen e Eddie

Figura 3: Zero Jigen e Eddie

Figura 4: Máscara de gás

Figura 4: Máscara de gás

 

Eddie companha este ritual em meio a náusea andando entre homens cujos rostos estão cobertos por máscaras que simulam as máscaras de gás.

 

HOMOSSEXUALIDADE DA ÉPOCA TOKUGAWA AO PÓS-GUERRA

 

Questões como a homossexualidade no Japão é pouco explorada por pesquisadores japoneses e, portanto, esta pesquisa se apropria de saberes produzidos por pesquisadores estrangeiros realizadas no Japão ou em países fora dele. O filme escolhido retrata a comunidade homossexual de gay boys que vivem em Tóquio. Para se mapear o termo “gay boy” foi necessário partir da homossexualidade desde o período Tokugawa de nanshoku e o conceito de “bishonen”, ou a apreciação da beleza jovial masculina que acaba por convergir no sentido final da composição lexical (ANGLES, 2011, p. 19). As relações homoafetivas no Japão não eram consideradas tabus, faziam parte de um conjunto de práticas sociais relacionadas com a hierarquia social funcionando neste contexto como norma e não como transgressão (LEUPP, 1997). A prática homossexual era conhecida como “nanshoku”, formadas pelos ideogramas “homem” e “cor” que se opõem ao “joshoku”, formado pelos ideogramas “mulher” e “cor”, originalmente importada da China onde a combinação se lia “nanse” (LEUPP, 1997). No entanto, o parceiro do wakashu na cultura do nanshoku era o nenja que assumia o papel de ativo:

 

O outro parceiro do mundo nanshoku era o mais velho nenja, que vestia roupas de adulto, tinha sua cabeça raspadas no estilo típico de um homem adulto, e sobre os ombros colocar uma manta de responsabilidade na sociedade. Quando tinha relações anais com o wakashu, o nenja era descrito tipicamente como assumindo o papel daquele que penetra. Um limite invisível da vida adulta era visto como separando o wakashu do nenja. (ANGLES, 2011, p. 6) [10]

 

A atividade se desenvolveu na ausência do corpo feminino nos templos entre os monges e nos campos de batalha entre os samurais, na época Tokugawa a prática se desenrola nos centros urbanos de Edo, antiga Tóquio entre a elite e passa a ser aceito entre os sujeitos comuns do povo (LEUPP, 1997). A prática envolvia desde casas de chás e de acompanhamento onde meninos trabalhavam para servir senhores mais velhos; jovens aprendizes de samurais e seus mestres e jovens atores andróginos[11] de teatro kabuki o wakashu que se travestiam de mulheres para interpretarem “papéis fictícios de jovens e de mulheres”, estes assumiam papéis passivos mesmo com homens mais novos (LEUPP, 1997, p. 199).

A relação homoafetiva não conflitava, ao contrário vinha como um complemento ao casamento heterossexual. Neste contexto a relação homossexual se resumia à penetração, fazia parte do desenvolvimento do aprendiz que sendo mais novo cabia um papel de passivo, ou de penetrado, enquanto que o mestre assumia um papel de ativo, ou aquele que penetra. Após o aprendiz atingir uma idade mais madura a este cabia um papel ativo na relação mestre e aprendiz ao mesmo tempo em que se buscava um casamento heterossexual, dessa forma se estabelecendo uma relação de complementariedade com a heterossexualidade constituindo parte da norma.

A prática do nanshoku era parte da cultura feudal que com a abertura dos portos em 1859 para os países estrangeiros e cristãos como a Holanda passa a não ser mais tolerada, sendo que no final do século XIX, o termo “douseiai” passa a ser usada para ser referir ao amor entre sujeitos do mesmo sexo, sendo vista como algo não natural (LEUPP, 1997, p. 202). E, ainda uma lei educadora foi promulgada em 1873, o “Kaitei Ritsurei”, cujo artigo 266 passou a proibir o sexo anal com a pena de 90 dias de trabalhos forçados que veio a responder as ansiedades dos educadores de Quioto em não sabe lidar com os atos homoeróticos e foi oficialmente retirara em 1882, porém permanecendo na psiquê dos japoneses (ANGLES, 2011, p. 9). Após o fim da cultura nanshoku, o romancista Ozaki Shiro aponta para uma nova possibilidade de se apreciar a beleza do bishonen, que se realiza com ao poema de Kaita e a prosa curta de Taruho, estes transmitiam de acordo com Angles (2011, p. 20), “uma resistência aparentemente inocente para a tendência dos sexólogos de tratar o amor entre homens como patológico e enraizado profundamente [...]” [12]

É importante salientar que a língua japonesa não possui as marcas de singular e de plural, ou artigos, não há gêneros masculino ou feminino nos vocábulos. Portanto, há certa dificuldade em se falar sobre “gay boy” neste artigo pela necessidade em língua portuguesa de se marcar o gênero das palavras. Para contornar essa dificuldade, foram omitidos os artigos e os pronomes.

O título do filme O Funeral das Rosas, original em língua japonesa “Bara no Soretsu”, contém a palavra Bara, rosa em língua japonesa, que foi usada pela primeira vez com o tom erótico pela revista Sangue e Rosa, original em japonês “Chi to Bara”, que reunia contos eróticos de escritores e que contou com a participação do escritor Yukio Mishima na edição de 1º de novembro de 1968. [13] Após o filme O Funeral das Rosas, bara, ou rosa, ganhou um sentido no universo gay de designar aquele que sai do armário e assume a sua sexualidade perante a sociedade.

A narrativa ficcional é centrada num triângulo amoroso entre Leda, interpretada pelo ator Osamu Ogasawara, que ocupa a mais alta hierarquia em um bar gay. Leda mantém uma relação afetiva com o dono do bar, o masculino Gonda, interpretado pelo ator Yoshio Tsuchiya, que além de corresponder ao afeto de Leda, mantém um relacionamento secreto com Edie, interpretada por Pita[14], que aspira possuir um bar gay. Tanto Leda quanto Eddie são interpretadas por gay boys na vida real que trabalham em bares gays na área de Tóquio.

 

GAY BOY

 

A narrativa se desenrola no bar gay chamado June, administrado por Leda que é chamada por todos como sendo Mama[15], ou seja, “mãe” ou matriarca daquele bar. Em uma conversa entre os clientes e as atendentes é mencionado o NHSMC: Nippon Homossexual’s Member Club, um clube onde se organizam festas uma vez por semana no distrito de Akasaka, em Tóquio, onde bishonen, ou seja, meninos bonitos fazem o serviço de acompanhantes. De acordo com o diálogo, nem todos os meninos que realizam tal serviço são gays, mas o fazem visando somente o dinheiro. As atendentes no Bar June se orgulham de serem gay boys “de verdade”, ou seja, não servem o cliente visando o ganho financeiro, o que seria desrespeitoso para os clientes. Nota-se um resquício da relação descrita anteriormente de “nanshoku” de cumplicidade e de respeito.

A identidade de “gay boy[16] guarda o resquício do sentido de um corpo de jovens andróginos que se trasvestem ou não com roupas e acessórios do sexo oposto, mas que se relacionam de forma passiva em contraste com os clientes mais velhos, bem sucedidos e masculinos que assumem possivelmente o papel de ativo. Os corpos são apropriados e reinterpretados pelos sujeitos ressignificando o sentido de “douseiai” como sendo algo não natural ou não apropriado:

    

Nos limites desses termos, “o corpo” aparece como um meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou então como o instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou interpretação determina o significado cultural por si mesma. Em ambos os casos, o corpo é representado como um mero instrumento ou meio com o qual um conjunto de significados culturais é apenas externamente relacionado. Mas o “corpo” é em si mesmo uma construção, assim como o é a miríade de “corpos” que constitui o domínio dos sujeitos com marcas de gênero. Não se pode dizer que os corpos tenham uma existência significável anterior à marca do seu gênero; e emerge então a questão: em que medida pode o corpo vir a existir na(s) marca(s) do gênero e por meio delas? Como conceber novamente o corpo, não mais como um meio ou instrumento passivo à espera da capacidade vivificadora de uma vontade caracteristicamente imaterial15?  (BUTLER, 2003, p. 27)

 

A narrativa ficcional de Eddie é cortada por cenas de entrevistas das atrizes que são gay boys inseridas no contexto de Tóquio no final da década de 1960. Nesse sentido as entrevistas são um importante relato histórico que pode auxiliar a compreender a situação vivida pelo homossexual em Tóquio naquele período, uma vez que “ao contrário da ficção, o documentário estabelece asserções ou proposições sobre o mundo histórico” (RAMOS, 2008, p. 22)

O entrevistador é o Diretor (D) que por vezes se espanta e interage com a entrevistada (E), que são em número de seis gay boys. Uma vez que o “[...] documentário, antes de tudo é definido pela intenção de seu autor de fazer um documentário (intenção social, manifesta na indexação da obra, conforme percebida pelo espectador)”, sua definição depende tanto do diretor que é uma figura masculina que conduz a entrevista. (RAMOS, 2008, p. 22) A entrevista é originalmente em japonês e a transcrição e a versão para a língua portuguesa foram nossas.

As entrevistadas I, III e V estão vestidas com kimono e maquiadas. Na história do teatro kabuki, devido ao escândalo dos wakashu, homens adultos começaram a assumir os papéis femininos estilizando-os cada vez mais. Na sociedade japonesa quando o jovem passava a ser considerado adulto, deveria raspar o topo da cabeça, o que quebraria o apelo do corpo jovem e o marcaria como corpo masculino. As entrevistadas obviamente lembram atores de teatro kabuki que assumem ficcionalmente papéis femininos, entretanto, não se tem uma estilização exagerada ou a voz em falsete, há uma aproximação com os trejeitos femininos de forma realista. O diretor elogia a entrevistada I afirmando que de nenhuma forma lembra um homem. A entrevistada 1 afirma gostar de se tornar uma mulher, mas que não deseja se tornar uma mulher de verdade. Ou seja, ela não aspira a cirurgia de readequação.  Essa possibilidade de assumir esse papel que é aceitável nos palcos enquanto artista de kabuki, no cinema é precisamente o que Butler (2003, p. 28) descreve como sendo a possibilidade realizável na cultura:

 

Os limites da análise discursiva do gênero pressupõem e definem por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis do gênero na cultura. Isso não quer dizer que toda e qualquer possibilidade de gênero seja facultada, mas que as fronteiras analíticas sugerem os limites de uma experiência discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal. Assim, a coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui como o domínio imaginável do gênero.

 

Contudo deve-se ser crítico em relação às manifestações culturais e representações e as conquistas políticas e a questão de agência, uma vez que o terreno fértil que permite ao gay boy apropriar-se de marcas culturais de gêneros preexistentes não reflete conquistas políticas de gênero em termos de aceitação social. Deve-se mapear essas mesmas estruturas que permitiam sua ontologia das identidades para se compreender a fundo a questão política do corpo do homossexual no contexto do filme, o que para Butler (2003, p. 59), se entende como:

 

O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. A genealogia política das ontologias do gênero, em sendo bem-sucedida, desconstruiria a aparência substantiva do gênero, desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria e localizaria esses atos no interior das estruturas compulsórias criadas pelas várias forças que policiam a aparência social do gênero.

 

Nesse momento histórico e cultural no Japão, a identidade gay boy passou a disseminada através das telas de cinema dirigida por Matsumoto, o gay boy pode apenas circular em determinados bairros noturnos em Tóquio onde vive e trabalha.  A entrevistada I demonstra a inadequação em ser mulher completa com a transformação radical de seu corpo e a impossibilidade de se voltar a assumir papéis masculinos. A entrevistada III é a atriz que interpreta o papel de Leda, cujo nome de profissão é Usagisan, ou seja, Coelhinha. A entrevista ocorre logo após a gravação da cena de sexo entre Eddie e Tony no estúdio. Usagisan responde que “não pode negar que o gay boy não sinta atração por homens e por mulheres”, “e, responde de uma forma geral que gay boys se sentem e agem como mulheres”. O seu papel no filme é a personagem Leda, que se veste e vive como mulher 24 horas ao lado da personagem masculina Gonda, ao lado do qual assume o papel de mulher/namorada. A produção mostra que há várias identidades dentro da categoria de gay boy, que trabalham em bares gays independente do fato de se transvestirem ou não.

A entrevistada V veste um kimono, usa maquiagem, com cabelos estilizados, ela mostra que o ambiente que ela vive é nos bares gays e que suas aspirações giram em torno deste ambiente, o que se nota na narrativa fictícia a disputa pela hierarquia e o controle do bar June. No caso da entrevistada, ela aspira possuir o próprio bar e possuir recursos próprios no futuro para isso. Para ela não há mais a possibilidade de se pensar em “casamento” heterossexual, o que representaria um retorno à normalidade da vida cotidiana dentro da sociedade japonesa.

Figura 5: Entrevista I

Figura 5: Entrevista I

Figura 6: Entrevista II

Figura 6: Entrevista II

Figura 7: Entrevista III (Usagisan - Leda)

Figura 7: Entrevista III (Usagisan - Leda)

Figura 8: Entrevista IV (Pita - Eddie)

Figura 8: Entrevista IV (Pita - Eddie)

Figura 9: Entrevista V

Figura 9: Entrevista V

Figura 10: Entrevista VI

Figura 10: Entrevista VI

O entrevistado II é um jovem andrógino vestido com roupas masculinas ela firma ter virado “gay boy” por gostar de ser “gay” e justifica que nascera gay. Tradicionalmente, o gênero é constituído partindo de uma designação “psíquica e/ou cultural do eu”, sendo que o desejo se compreende como atrelado ao gênero na medida em que este se constrói enquanto oposição ao gênero que deseja, reproduzindo uma estrutura heterossexual:

 

O gênero só pode denotar uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige um gênero - sendo o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu - e um desejo - sendo o desejo heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. (BUTLER, 2003, p. 45)

 

Entrevistada IV é a atriz cujo nome artístico é Pita, com peruca loura e maquiagem de cena. Ela é entrevistada após a gravação da sequência de cena em que sua personagem Eddie atormentada pelo passado se refugia nos braços de Guevara, que a consola. Pita está seminua apesar de a câmera mostrar somente o rosto maquiado. Enquanto dá a entrevista, ajeita a franja com os dedos finos e unhas pintadas. Ela responde que a questão do gay boy é mostrada de forma bela pelo diretor, se identificando com a personagem Edie. A atriz assume o nome artístico de Pita, após fugir de casa e se mudar para Tóquio, assim como inúmeros jovens que se tornaram gay boy para viver a sua sexualidade, trabalhando em bares de Tóquio. Ela foi descoberta dançando em um bar gay da estação de Roppongi em Tóquio aos 16 anos.

A entrevistada VI é feminina, está maquiada, com cabelos longos está rodeada de letreiros de neon ao ar livre, à noite. A entrevistada VI mostra uma frustração em relação à identidade gay boy especialmente em relação ao seu futuro. A preocupação pode estar relacionada ao fator idade, uma vez que o próprio nome “gay boy” denota a relação com o corpo do jovem que se relaciona com um homem mais velho remetendo ao sistema de nanshoku do passado, possivelmente apontando para uma relação entre passivo e ativo respectivamente. Com o avanço da idade, o corpo passa a perder o apelo jovial e nele passam a ser inseridos significantes de maturidade e de papéis como ativo.

A produção fílmica permitiu que Pita saísse dos bairros noturnos e estampasse capas de revistas e passarelas de moda realizando trabalhos como cantora e de atriz. No entanto, a questão do gay boy se integrar na sociedade em profissões não ligadas às artes é ainda hoje um tabu. Poucas conseguem se integrar à sociedade e é feito por vias de cirurgias de readequação sexual apagando quase que por completo a masculinidade, assim muda a sua certidão e seus documentos e se torna politicamente mulher. Aceita-se o corpo jovem andrógino que forma par com um ser masculino, tema explorado no gênero mangá yaoi, juntamente com esse tema explorasse a possível rejeição quando este corpo adolescente ganhar contornos de corpo adulto. E, há o absoluto silêncio na questão do envelhecimento do casal homossexual.

 

NARRATIVA FICCIONAL

 

O filme tem como cena de abertura uma cena de sexo entre Eddie, maquiada, com cílios postiços e o homem maduro Gonda. A câmera foca em partes do corpo magro de Eddie e, na sequência, na cena do chuveiro mostra a ausência de seios em Edie. O espectador é conduzido pela câmera observa finalmente que se trata de uma relação homoafetiva. Em seguida temos uma cena estática em que Gonda e Eddie, sentados na cama se encontram afastados um do outro. A cena seguinte mostra uma sequência de um carro com um telhado, ou seja, um carro funerário que se aproxima e passa ao lado da câmera, e em seguida Eddie e Gonda saindo do motel. O carro funerário simboliza um prenúncio do fim trágico que os aguarda.

Leda interpretada por Usagisan pressiona Gonda para que este deixe Edie e o negócio ilícito de drogas, mas Gonda se recusa e ameaça tirar Leda do cargo de “mama” da boate. Leda reage ameaçando denunciar à polícia a atividade ilícita de Gonda e de Eddie. Gonda decide retirá-la do cargo mais alto da boate, a cena é mostrada tendo Leda ao chão deitada em estilo dramático do teatro kabuki, no plano baixo, enquanto que Gonda está de pé no plano alto, embalado com o recurso sonoro típico do teatro kabuki que fecha a cena tragicômica.

A cena do confronto de Eddie e Leda é também construído de forma cômica, Eddie está caracterizada como uma cow girl loura de cabelos compridos enquanto que a Leda veste um kimono. Tanto Eddie como Leda portam armas de brinquedo com rolhas nas pontas que fazem um barulho infantil ao serem disparadas. Segue uma sequência de fotos das duas personagens com balões preenchidos com ofensas que lembram mangá, até que no último balão Eddie acaba por chamar Leda provavelmente de “vagina”, pois o termo é censurado assim como seria no mangá. Em seguida as duas personagens brigam corpo a corpo, suas vozes são retiradas por edição e a cena é embalada por uma música infantil.

Leda, como vingança a Eddie, denuncia as atividades ilícitas que esta realiza à polícia, Gonda descobre a tempo e se desfaz das drogas. Em seguida, Gonda confronta Leda dizendo: “Espelho, espelho meu, quem é a pessoa mais bonita do que eu? Você envelheceu, seu reinado terminou”. Leda se dá conta que perdera Gonda e o bar para Eddie, e comete suicídio. Leda é velada vestida de noiva em meio a rosas brancas, demonstrando uma beleza mórbida e as suas cinzas são depositadas em uma lápide onde a água ameaça continuamente a invadir. Eddie no passado assassinara a mãe que zombara de suas tentativas de usar a sua maquiagem e de protegê-la como um homem. Esta relação parece se repetir na relação tensa com Leda que é chamada de “mama”, ou seja, mãe por ocupar a hierarquia mais alta no bar gay, e com a sua morte, Eddie assume esse posto, recebendo o título de “mama” o que remete novamente à figura materna.

Com a morte de Leda, as suas companheiras já envelhecidas no bar que se vestiam com roupa tradicional japonesa abandonam o local e cede espaço para ao novo estilo ocidentalizado das jovens amigas de Eddie.

Na cena final, após fazerem sexo, Gonda encontra uma foto da família de Eddie da época em que esta era apenas uma criança, onde não se pode ver o rosto do pai que está queimado por cigarros. Gonda percebe que Eddie é o filho que abandonara anos atrás e comete suicídio cortando o pescoço com um punhal. Eddie entra no banheiro, vê Gonda morto e a foto que causara a tragédia. Ela pega o punhal e se cega. Nesse momento segue um mural de fotos de Eddie com os olhos furados, sangrando. Eddie caminha em direção ao sol e à rua se expondo ao público. O local onde essa cena foi filmada foi a estação de Harajuku em Tóquio, na época rodeada, com luxuosas e modernas construções de apartamentos.

A feminilidade de Eddie é construída através do contraste com os corpos dos indivíduos masculinos, seja Gonda o seu par romântico que revela ser o seu pai, o estudante com escoriações que enfrentara a polícia, ou por meio de seus gestos femininos que contrastavam com as ações consideradas masculinas como os protestos ritualísticos dos membros do Zero Jigen que se apresentam nas ruas. A identidade gay boy sofre influência da relação nanshoku e do culto ao corpo jovem do bishonen, apontada pela jovialidade de gay boy. Edie é também mostrada como um jovem andrógino com roupas masculinas, que se maquia e veste perucas se tornando uma figura feminina. Contudo, tanto a narratitva ficcional quanto o depoimento das entrevistadas mostram a impossibilidade de se ter um final feliz em uma relação homoafetiva, pois Edie se cega ao perceber a sua transgressão ao final.

 

CONCLUSÃO

 

O filme O Funeral das Rosas representa uma inovação em questões de experimentação da linguagem fílmica e de gêneros como documentários, mesclando narrativa ficcional e a realidade. Há uma pluralidade de vozes que se recusam a se calar, em um espaço ocupado por vários grupos: o discurso americano antiguerra penetra em solo japonês. É um momento em que vários grupos resistem contra o sistema e à sociedade compartilham o mesmo espaço de Tóquio no final da década de 1960, através da violência por parte do grupo estudantil Zengakuren; através de rituais políticos de Zero Jigen e a através da criação de um espaço onde gay boys possam viver a sua identidade sexual. Ocorre o diálogo entre os diversos grupos considerados marginais naquela sociedade, onde os discursos se cruzam sem que um silencie o outro. A técnica do cinema mostra recursos do teatro kabuki, do cinema verité e a câmera de documentários e inova ao explorar em um mesmo espaço, grupos distintos com reivindicações políticas distintas. A produção trouxe à luz e deu a visibilidade à questão do gay boy que estava latente no inconsciente do público pela própria questão cultural de apreciação do corpo masculino jovem, ou seja, bishonen na literatura que foi transposta ao cinema. Essa representação do gay boy na mídia disseminou pelo país a possiblidade gay boys viverem a sua identidade sexual ainda que restrita a determinados bairros noturnos das metrópoles com Tóquio e possibilitou que muitos almejassem trabalhos ainda que restrita ao  campo artístico.

 

REFERÊNCIAS

 

ANGLES, Jeoffrey. Writing the Love of Boys: origins of bishonen culture in modernist Japanese literature. London and Minneapolis: U. of Minnesota P., 2011.

 

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade. 1ª Edição Tradução de Renato Aguiar. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003.

 

DICTIONARY. “Bara no Soretsu” ga yoku wakaru kiwarudo. Image and Form; Gaguerreo Press. Disponível em: < http://www.imageforum.co.jp/matsumoto/mtm-br-dct.html> Acesso em 05 de agosto 2014.

 

DOMENIG, Roland. The Art Theater Ghild. 2003. In: MATSUMOTO, Toshio. Funeral Parade of Roses. Toquio: Art Theater Guild and Matsumoto Productions, 2006, p. 22-39.

 

DUARTE, Adriane da Silva. Apresentação: Teatro grego; o que saber para apreciar. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPEDES, ARISTÓFANES. O Melhor do Teatro Grego: Prometeu Acorrentado; Édipo Rei; Medeia; As Nuvens. Edição comentada. Trad. Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 7-15.

 

HALL, Stuart. Encoding/Decoding." In Ed. Paul Morris and Sue Thornton. Media Studies: A Reader. 2 ed. Washington Square, NK: University Press, 2000, p. 51-61.

 

______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org. e trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 103-133.

 

LEUPP, Gary P. The Construction of Homossexuality in Tokugawa Japan. Los Angeles: U.of California P., 1997.

 

MATSUMOTO, Toshio. Funeral Parade of Roses. Toquio: Art Theater Guild and Matsumoto Productions. The Masters of Cinema Series. Eureka, 2006.

 

NOVIELLI, M. R.. História do Cinema Japonês. Brasília: UnB, 2007.

 

O’ROURKE, Jim. Timeline for a timeless story. 2006. In: MATSUMOTO, Toshio. Funeral Parade of Roses. Toquio: Art Theater Guild and Matsumoto Productions, 2006, p. 4-21.

 

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008.

 

ROSS, Julian. Filmed Rituals: Zero Jien incarnartes on Screen. Desist film 006: film as a poetic object, as a unique, magical experience. University of Leeds – Close-up film Centre. Disponível em: <http://desistfilm.com/filmed-rituals-zero-jigen-incarnates-on-screen/> Acesso em 5 de agosto de 2014.

 

 

 

ANEXO

 

ENTREVISTA I

D: “Você é uma mulher de todos os ângulos.”

D: “Desde quando você entrou nesse mundo?”

E: “Há cerca de 4 anos.”

D: “Com que motivação você se tornou um gay boy?”

E: “Eu gostaria de ser mulher, porque eu gosto.”

D: “Você gosta de mulher?”

E: “Não, eu [gosto de] me tornar mulher”

D: “Que tipo de satisfação você sente?”

E: “Esse momento está muito divertido.”

D: “Já pensou em voltar a ser homem?”

E: “Não agora.”

D: “Você quer virar uma mulher de verdade?”

E: “Não, até esse ponto.”

 

ENTREVISTA II

D: “Desde quando você se tornou gay boy?

E: “Desde dezembro do ano passado.”

D: “Por que você virou gay boy?”

E: “Porque eu gosto.”

D: “O que você gosta?”

E: “hmm, de ser gay.”

D: “Você gosta de ser gay?”

E: “Sim.”

D: “Você gosta de ser gay?”

E: “Sim.”

D: “Quer dizer que gosta de homens?”

E: “Não hmm não é, não sei... Mas eu gosto de ser gay”

D: “Gay, você gosta de ser gay boy?”

E: “Sim.”

D: “Por que você gosta?”

E: “Nasci assim.”

D: “Nasceu  assim?”

E: “Sim.”

 

ENTREVISTA III

D: “O que você achou da cena de sexo?”

E: “hmmmm, neh... [risadas]”

D: “O relacionamento afetivo de um homem com outro homem, como gay boy o que você acha? Você sente culpa?”

E: “Sim, mas acho que não é algo para se dizer entre homens e homens, mas se gostar não importa se é homem ou mulher, o amor é isso, não é? ”

D: “Gay boy não tem interesse pelo sexo oposto, por mulheres?”

E: “Isso... deve ser muito diverso. Mas eu não posso dizer que não.”

D: “Então sente mais atração por homens?”

E: “No meu caso?”

D: “Gay boy em geral.”

E: “Em geral seria isso, né. Todo mundo se acha mulher e agem como    

        mulheres. [risadas]”

D: “E você?”

E: “Eu? Deixo à cargo de sua imaginação.”

 

ENTREVISTA IV

 D: “Pîtá, o que você acha da protagonista Eddie?”

E: “Eu acho que o jeito é muito parecido comigo. Por exemplo se separar do pai. O dia a dia... A personalidade também se parece. ”[ risos]

D: “A personalidade se parece?”

E: [risos]

D: “Você sente empatia pela protagonista?”

E: “Sim. No jeito como vive. Não nessa questão do incesto. Compreendo a personalidade.”

D: “Quando pensou em fazer esse papel. Onde você pensou que iria atuar?”

E: “Ainda é a primeira vez que atuo em filme. E está muito interessante. Parece com o ambiente que vivo, e essa questão de gay boy que mostram de forma tão bela.”

D: “E, as cenas de sexo?”

E: “Deixo esse lado com o diretor.”

 

ENTREVISTA V

D: “Eu gostaria de perguntar o seu maior sonho para o futuro. O que quer fazer?”

E: “Sim. Gostaria de juntar um pouco de dinheiro. E abrir uma loja minha.”

D: “Bar gay?”

E: “Eu acredito que sim.”

D: “Viver como gay boy?”

E: “Sim.”

D: “E você não pensa em se casar?”

E: “Penso. Mas não pretendo fazê-lo. Não posso fazer. Porque não posso mais voltar a ser homem.”

 

ENTREVISTA VI

D: “Me diga o que quer fazer, o que quer ser no futuro.”

E: “Não tenho nada.”

D: “hã!?” [espanto]

E: “Não tenho nada.”

D: “Não quer ser nada?”

E: “Não.”

D: “Não tem nada que queira fazer?”

E: “Eu só quero fazer isso agora.”

D: “Isso, você quer dizer, viver como gay boy é a sua felicidade?”

E: “No momento.”

D: “E a partir de agora?”

E: “Não tenho nada.”

D: “Não tem nada?”

E: “Nada.”

D: “Você é feliz sendo gay boy?”

E: “Não, eu não sou tão feliz.”

D: “Se você não é feliz, porque é gay boy?”        

E: “Porque será.”

D: “Porque será?”

E: “Porque será.”

 

 

[1] O título adotado em língua inglesa foi Funeral Parade of Roses.

[2]Original em língua japonesa. Fonte: IMAGE AND FORUM. Disponível em: < http://www.imageforum.co.jp/matsumoto/mtm-br-dct.html> Acesso em 5 de agosto de 2014

[3] […] Ingmar Berman and Jean Couteau, Michelangelo Antonioni, Luis Bunuel, Federico Fellini, Alain Resnais and other established directors, […] several less famous names such as young Polish directors (Kawalerowicz, Andrzej Wajda, Andrzej Munk), the French Nouvelle Vague (Jean-Luc Godard, François Trufaut, also Agnes Varda and Bertrand Blier), Soviet filmmakers (Mikhail Kalatozov, Mikhail Shvejtser, Iosif Kheifits, Sergei Parajanov), young rebels like John Cassavetes and Tony Richardson, and, not to be forgotten, Satyajit Ray and Glauber Rocha. (DOMENIG, 2003. In: MATSUMOTO, 2006, p. 27-8)

[4] The first stage performance in the Shinjuku Bunka was the Japanese premiere of Edward Albee’s The Zoo Story on June 1, 1963, followed by more plays by Albee, Tennessee Williams, Samuel Beckett, Harold Pinter, LeRoi Jones, Tankred Dorst, Jean Genet, Edward Bond, Barbara Garson, and other contemporary foreign dramatists. (DOMENIG, 2003. In: MATSUMOTO, 2006, p. 31)

[5] Eddie's participation in a pornographic film shoot, which not only heightens the “complex / fiction" structure of the film, but also makes a contemporary reference to the rise of underground pornography. The director in this scene is Matsumoto, who despite not making such films himself, was related in spirit to many of the new wave of pornographic, or "pink", filmmakers (O’ROURKE, 2006, p. 18)

[6] “In Funeral Parade of Roses the interviewed student protester seems almost like an outlaw, on the run from a society that just does not want to hear from students anymore. (O’ROURKE, 2006, p. 15).

[7] With the rise of the Cultural Revolution in China in 1966 passions were further inflamed on campuses throughout Japan. During the next few years, the Zengakuren fractured and split into factions with varying degrees of allegiance to the Communist Party. What had previously been a face of unity dispersed into various concerns such as the American bases in Okinawa. Their possible use as a base of operations for American expansion into Vietnam implicitly involved Japan in military action, something it had been forbidden from under the terms of the peace treaty. (O’ROURKE. 2006, p. 14)

[8] The group was started in Nagoya by Kato Yoshihiro and Iwata Shinichi who soon became infamous for their "ceremonies," as they chose to call them. Moving to Tokyo, their performances were noted for their nudity and unabashed confrontation with shoppers in the major neighbourhoods of Shinjuku, Ginza, and Shibuya. While generally ignored or even attacked by contemporary art criticism, Zero Jigen did find itself regularly chronicled in newspapers and magazines, usually under racy headlines likening them to "orgies" or "porn parties." Unlike this inflammatory rhetoric, Zero Jigen created situations that were more in sympathy to the "ritualistic" concerns of many artists of the time, replacing overt political or literary references with a series of interchangeable movements, props, and heavy use of repetition. (O’ROURKE, 2006, 16-17)

[9] ROSS, 2002. Disponível em:< http://desistfilm.com/filmed-rituals-zero-jigen-incarnates-on-screen/>Acesso em 5 de agosto de 2014.

[10] The other partner in the world of nanshoku was the older nenja, who wore adult clothes, had his pate shaved in the fashion typical of adult men, and shouldered the mantle of adult responsibility in society. When engaging in anal sex with a wakashu, the nenja was typically described as playing the role of inserter. As invisible boundary of adulthood was seen as separating the wakashu from the nenja.(ANGLES, 2011, p. 6)

[11] Os jovens atores substituíram as atrizes que se prostituíam.

[12] Original em inglês: “[...] seemingly innocent resistance to the tendency of sexologists to treat male-male love as pathological and deep-rooted [...]” (ANGLES, 2011, p. 20)

[13] Original em japonês. Bara/Barazoku. Doujin yougo no Kisochishiki. 16 de dezembro de 2002. Disponível em: <http://www.paradisearmy.com/doujin/pasok2o.htm> Acesso em 5 de agosto de 2014.

[14] O nome da personagem vem da pronúncia em japonês da palavra de origem inglesa “Peter” de Peter Pan, ela adota esse nome artístico que remete ao fato dela possuir um corpo de menino. Portanto, lê-se “Pîtá”

[15] “Mama” ou “Mamasan” são formas como as mulheres que trabalham a noite tratam a dona do bar ou aquela que ocupa a hierarquia maior na casa. Esse termo foi adotado também nos bares gays.

[16] Neste artigo evitou-se usar o termo travesti e foi mantido o termo “gay boy” adotado no filme, sendo que a sua forma no plural foi adaptada para o português como: “gay boys”, pois não existe os números singular e plural na língua japonesa. Há partículas que anexadas ao termo indicam uma coletividade da qual não me incluo que é o “tachi” que não é utilizado no filme. Quando falo de uma coletividade que eu faço parte, falo watashitachi gay boy/ wareware gay boy (mais formal), literalmente, “nós, gay boy”, mantendo o conjunto lexical “gay boy” na forma inalterada.