Palavras-chave: Etnobiografia, etnografia da duração, imagem, memória coletiva, filme etnográfico
Keywords: Ethnobiographical, ethnography of duration, image, collective memory, ethnographic film
Introdução
Em 1999, recebemos um convite para participar de um evento em Córdoba, Argentina. A honraria era fruto das produções de antropologia audiovisual no âmbito do projeto que coordenamos, Banco de Imagens e Efeitos Visuais, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (IFCH, UFRGS, Porto Alegre, Brasil) desde 1997. De modo mais específico, o convite previa a exibição do documentário etnográfico Arqueologias do Mundo, tendo por base a tese de doutorado de Ana Luiza[1] em parceria com a cineasta Maria Henriqueta Satt, e qualificado com o prêmio Pierre Verger, concedido no ano anterior, na Reunião Brasileira de Antropologia, em Niterói, Rio de Janeiro. Este documentário tinha por base o estudo da memória coletiva a partir de uma etnografia da duração, tendo por narradores, citadinos na cidade de Porto Alegre em especial trabalhadores do mercado público.
Era a IX Mostra de Cinema e Vídeo Antropológico em Córdoba, Argentina, na Escola Universitária de Cine, Vídeo e Televisão, ocasião em que a obra do cineasta argentino (ou americano) Jorge Prelorán receberia uma homenagem. Foi a oportunidade para conhecermos a cineasta Ana Montes de Gonzáles que assim como Raymundo Gleyzer, tiveram parceria nas produções de Jorge Prelorán que datam de 1965 a 1972 (Moore, 2015). Foi uma ocasião para ouvi-la falar apaixonadamente e também criticamente, da obra deste cineasta. Oportunidade privilegiada para descobrir seus filmes como a série Gaucho (1960-1962), Imaginero (1970), Medarjo Pantoja (1968), entre outros (Valle Fértil, Hermógenes Cayo, Los hijos de Zerda, Cochengo Miranda). Sua produção é ampla e todo acervo está sob a guarda da Human Studies Film Archives, Smithsonian Institution, nos Estados Unidos onde Prelorán viveu sua velhice.
Mas por que iniciar este artigo com esta notícia, que tem por objetivo mais uma vez, divulgar nossa pesquisa antropológica na forma de produção de etnografia da duração audiovisual? Ocorre que nesta conjuntura estávamos coincidentemente, após anos de estudos teóricos e conceituais, a elaborar um thesaurus de categorias e palavras chaves para propor uma estrutura constelar a ser a base de uma bacia semântica a guiar a nossa pesquisa com imagens. Não somente orientar os nossos exercícios com base no método etnográfico como também o nosso processo de construção de um acervo etnográfico em imagens seguindo a metodologia da convergência, na construção de coleções etnográficas de imagens produzidas e pesquisadas em suportes de fotografia, som, vídeo e textos (relatos etnográficos, jornais, revistas, crônicas, bibliografia de modo geral) (Rocha e Eckert, 2013, 2015) tendo por meta a construção sistemática de “vastas constelações de imagens, constelações praticamente constantes e que parecem estruturadas por um certo isomorfismo dos símbolos convergentes” (Durand, 1984, p. 31).
Neste contexto, a obra de Prelorán se tornou uma importante referência para nos orientar na pesquisa etnográfica quanto a construção de etnobiografias. Ver seus filmes foi reconhecer uma prática de cinema antropológico de construção de personagens que narram suas práticas e saberes cotidianos em paisagens rurais ou rururbanas de esforços de plantio, mas também de artesanato, pinturas, tecelagem e um mundo de rituais e festejos populares em base cosmográfica e cosmológica. Sua etnobiografia pode, como um schéme (Durand, 1984), ser designado como topografia. Os personagens, em especial algum interlocutor, o que Prelorán buscou na maioria de seus filmes, é captado de forma sensível pela câmera e as imagens editadas são as que trazem ritmo e ressonância à memória dos lugares vividos, onde o lugar da enunciação é a paisagem do interior argentino (oeste e norte).
Seu cine etnobiográfico torna-se, para nós, significativo. Um cinema documental que propõe uma aproximação progressiva com as pessoas e seus lugares de vida a ponto delas se tornarem personagens reconhecíveis com os quais todos nós podemos nos identificar no âmbito de uma humanidade. Os personagens são captados em seus gestos corriqueiros e em suas lógicas de narrar os tempos pensados e vividos (Bachelard, 1963) que entrelaçam os sentidos dos espaços praticados (De Certeau, 1984) com forte vínculo de pertença territorial e ao ritos da tradição. Segundo tal perspectiva, é a fala do outro sobre o seu si-mesmo e o seu mundo cósmico e social aquilo que nos dá as pautas para filmar as memórias vividas. Assim, entendemos a etnobiografia como tempos e lugares de narrativas da vida de uma pessoa. Ações narrativas que nos orientam sobre o conjunto de imagens das produções culturais que evidenciam lógicas de estruturas figurativas. São relacionalmente ações individuais e coletivas, familiares e rizomáticas, nos orientando quanto a complexidade das superposições temporais das experiências vividas em que vibram as memórias da identidade narrativa dos personagens.
No cine etnobiográfico, ao narrarmos a vida de uma pessoa estamos narrando um projeto coletivo, memórias familiares e do grupo social, memórias de sua comunidade ética. Um ponto de vista sobre o documental que nos convoca a pensar sobre as condições de mise-en-scène das palavras do Outro nos filmes de memória e a sua relevância para o registro coletivo das formas corporais, gestuais e posturais que as acompanham.
Certo, suas experiências com etnobiografias não eram originais mas resultado dos esforços de uma comunidade de etnocineastas como Robert J. Flaherty e sua “câmera participante”, ou Jean Rouch com sua “câmera subjetiva, cinetranse e etnografia compartilhada”. Flaherty, por exemplo, diz Jean Rouch sobre Nanook, sua obra mais renomada, escolhe contar a história de um amigo, um personagem singular que também escolheu o cineasta como amigo: “não se tratava de fazer um documentário, ou de registrar um documento da vida primitiva, mas sim de recontar uma história velha como o mundo, a história da luta de um homem contra uma natureza prodigiosa em benefícios e sofrimentos [...], o que Luc de Heusch chamou de câmera participante” (Jean Rouch apud Colleyn, 2009, p 96 e 97). Jean Rouch, por seu lado, foi o pai de um projeto de filme etnográfico com apropriação de tecnologias inovadoras (câmera no ombro), junto a comunidades étnicas africanas bastante impactadas pelo processo colonizador. Uma etnobiografia que desliza facilmente para um constante diálogo entre o personagem e a história contada pela intensa empatia do diretor com seus interlocutores, mesclando os personagens da narrativa como pondera Marc Piault (apud, idem, p. 159), para quem Rouch, ao seguir (observar, escutar e filmar) o Outro, o reconhece em sua autonomia, em sua legitimidade e seu ponto de vista e, em consequência, sua complexidade relacional (idem).
É esta perspectiva relacional que nos engaja no cinema "com os outros" das obras de Préloran, Rouch e do cineasta-antropólogo que agora introduzimos, Jean Arlaud. São cinemestres que apostaram na inteligibilidade narrativa da vida sóciocultural de pessoas e grupos, e em quem nos detemos aqui, para tratar de um esforço de consolidar o projeto fílmico do BIEV na etnografia da duração. Arlaud, nosso orientador de pós-doutorado (Paris, 2001), nos ensina que a estética de seus filmes é a ética de uma relação social solidária e afetiva, de uma rede ativa de sociabilidades cotidianas. Sua prática em que a etnografia em um bairro étnico, em uma cidade como Paris (França), entrelaça trajetórias narradas na dimensão etnobiográfica, na saga dos imigrantes que vivem no mesmo bairro pluriétnico, por um lado estigmatizado mas por outro lado efervescente de laços de tradições que de alguma forma os une em uma concha de ouro (la conca d’oro). Plurissignificações que Arlaud conhece não somente por ser mais um habitante do bairro, mas por ir a fundo na tessitura destes rastros filmando na África, na América, no interior francês, sempre imbricando-se nas artes de saber fazer e nas práticas de narrar das pessoas que lhe confiam suas histórias. As histórias pessoais são constitutivas de identidades de pertenças territoriais em suas descontinuidades e deslocamentos entre tantos mapas mentais.
Na pesquisa de campo, e na pesquisa com acervo de imagens, o etnógrafo-documentarista se solidariza com a narrativa do tempo, em que as experiências temporais são refiguradas pelos personagens interlocutores nos seus vínculos aos lugares de enunciação da palavra do Outro. A consonância das narrativas vão dando profundidade à memória dos lugares recitados, não por suas evidências naturais, nem tampouco se resumem às referências sociais, mas por colocarem em alto relêvo a imaginação criativa, o que Gilbert Durand descreve como o trajeto antropológico que consta das constantes operações de troca ou de alternância dos imperativos subjetivos do psiquismo com as intimações objetivas do meio social (Durand, 1984). É essa potência da imaginação criativa nas narrativas etnobiográficas que nos entusiasma nos filmes de Prelorán, Jean Rouch e Jean Arlaud, pelo potencial de esquematização de imaginações que dão rítmica às experiências temporais descontínuas, tecidas como uma coreografia de sentidos singulares.
O trabalho com o imaginário, transcriando etnobiografias
Quais as formas de tratamento da figura do Outro empregados na prática antropológica do BIEV para a realização de documentários etnográficos ? Quais sãos as abordagens adotadas por seus bolsistas e pesquisadores, suas formas de registro e os instrumentos utilizados para o captura da imagem do Outro ? Quais as marcas simbólicas que balizam os procedimentos de gravação escolhidos para exprimir no vivido humano os jogos da memória e seus esforços para durar no tempo ? Como restituir a sua verdade ? Segundo Jean Arlaud, o valor de um documentário etnográfico reside na sua justa capacidade de revelar as formas e as aparências diversas que assume a figura humana no mundo, de exprimir a autenticidade de suas formas de vida e a carga simbólica de suas interações com o meio cósmico e social. Uma verdade construída por intermédio do olho da câmera e da escuta do microfone colocado ao lado dos protagonistas da cena, e onde cortes e montagem, para além de alguns planos sequência, nos termos de Jean Rouch, colados aos acontecimentos, procuram interpretar o instante por eles e elas vivido. Verdade que se torna um objetivo para os protagonistas da ação narrada tanto quanto por aquele que opera a câmera, a luz e o microfone, que conduz a entrevista ou que trabalha na produção do documentário.
A pesquisa de campo é anterior a toda a construção da obra fílmica, ela nos guia para uma imagem (e não a imagem) das pessoas, segundo o tempo e o espaço em que se encontram. Não é a imagem na época e no contexto em que vivem. Uma imagem insubstituível por ser única, entretanto, fruto de um ponto de vista, de uma escolha de forma de filmar entre outras tantas e que, posteriormente, se tornará emblemática. Razão pela qual as preocupações mais severas com tais escolhas em termos da ética do compromisso com a palavra do Outro para que ele se reconheça nas imagens produzidas e possa interferir na forma como a produzimos. A imagem se torna, assim, verdadeira em sua existência e, assim como a palavra, ela pode ser interpretada em seus diferentes sentidos. O verdade de uma imagem não é eterna, nem resulta uma objetividade bruta, mas do comum de sentido que dela se desprende durante sua feitura no processo de trabalho de campo, em presença do outro e junto a sua comunidade de destino.
Através de uma reflexão em torno da complexidade do problema cinematográfico (roteiro, gravação, decupagem, montagem) para o caso da refiguração da fala do Outro, da construção da etnobiografia na etnografia da duração, é essencial o dinamismo das situações de entrevista e as condições de interação através das quais provocamos nossos parceiros de pesquisa a narrarem suas experiências de vida nos lugares que evocam como centro organizadores de sentido, campo de suas artes de imaginar, as etnobiografias.
Estes dispositivos estão amalgamados por um campo interpretativo que formulamos a partir do postulado do trajeto antropológico do imaginário de Gilbert Durand, como já orientamos mais acima. Como sistemas operatórios de formas mentais, evocamos dispositivos de produção e pesquisa de imagens que estruturam nossas percepções e entendimentos sociais, culturais, psicológicos, tendo por diretriz, como anunciamos no resumo e na introdução, o método de convergência de imagens motoras repercutidas pela homologia das imagens.
Acionamos os dispositivos projetando uma coleção de imagens etnográficas elaborada ao longo das sucessivas etapas de trabalho que precisam ser constantemente inventadas e reinventadas, formadas e reformadas a cada acontecimento vivido na pesquisa etnográfica com nosso interlocutor, ou nossos interlocutores, que consentem este tempo de “jogo de memórias”, e onde a experiência vivida na captura da fala do Outro, em que sua narrativa evoca a passagem do tempo, em sua alternância e rítmica, passa a ser condição do descobrimento do protagonista da ação narrada e, através dele, de suas formas de pertença sociais e culturais em que emergem as etnobiografias que queremos destacar nos filmes de memórias.
O dispositivo técnico
A produção das imagens, a compreensão das imagens, são embaladas por múltiplos processos culturais. As formas reconhecidas na pesquisa, na troca do viver etnográfico, estão primeiramente relacionadas as escolhas dos dispositivos técnicos segundo as possibilidades instrumentais (escala de planos, movimento de câmera e microfone, iluminação, o trabalho dos planos, dos ângulos, etc.) em conjunto com os dispositivos cênicos e dramáticos que acompanham a gravação, todos os três relacionados às formas de se jogar o social como nos provoca Georg Simmel em sua obra (apud Velho, 1989) que reúne o(a) antropólogo(a) e seus consortes de pesquisa no interior de um diálogo etnográfico, uma parceria para evocar memórias, um jogo de memórias.
O dispositivo cênico
Trata dos instrumentos que explicitam as circunstâncias de produção da palavra do Outro e que são acionados durante a realização do documentário : o lugar, a época, as condições de vida, os gestos e posturas do protagonista, etc. Aponta-se aqui para o espaço adequado por meio do qual o documentarista por meio de linguagem fílmica cria as condições ideal para que a palavra do Outro possa se desprender de seu espaço de enunciação uma vez que ela é corpo, voz e cenário que se interpenetram e complementam a um só tempo. Referimo-nos aqui aos desafios de capturar a palavra do outro e de restituí-la oferecendo ao protagonista da ação narrada um espaço de intima complexidade consigo mesmo, atentos as circunstâncias sob as quais se manifesta a produção de sua fala .
O dispositivo dramático
O dispositivo de captação da fala do Outro que a direção deve ou pode acionar no momento da gravação, e que podem inventar ou reinventar novas formas de interações com seus parceiros de pesquisa. Para a escolha de tal dispositivos exige-se da direção um conhecimento razoável do dispositivo cênico, dos lugares de gravação, tanto de abertura ou de ruptura, acima de tudo lugares que assinalam referências culturais dos protagonistas da ação narrada (ruas, esquinas, bares, entroncamentos, praças, entre outros, e que caracterizam-se por coreografias singulares).
As situações de entrevistas não diretivas, semiestruturadas, trazem para o etnógrafo o desafio de fazer falar os nossos parceiros de pesquisa, ao mesmo tempo que o confronta com as condições da mise-en-scène de sua palavra assim como as condições performáticas que a produzem. O registro sonoro e visual deve pautar-se pelo reconhecimento do protagonista da ação narrado como um diferente (desconhecido) para o espectador, sendo que a entrevista desencadeia o fenômeno da identidade narrativa através do qual o personagem ao narrar uma ação adota uma posição de distanciamento de si, transformando-se, assim, na figura do personagem narrador.
A escolha dos dispositivos de captação estão assentados em princípios não apenas estéticos mas éticos no que tange as práticas do antropólogo diante da fala do Outro e dos desafios da sua restauração. Diante da diversidade cultural e social como a direção faz suas escolhas práticas em campo tendo em vista o respeito a singularidade dos protagonistas da ação narrada, evitando, assim, cair em discursos hegemônicos que tem por base o consumo do exótico, do pitoresco e do bizarro, lembrando Préloran.
A identidade narrativa e o dispositivo cênico
Em termos dos dispositivos dramáticos duas interrogações despontam para o caso de uma perspectiva antropológica do registro audiovisual. Nos termos bachelardianos, onde posso me situar para compreender uma alteridade: fora ou dentro? Quais as implicações subjetivas que ambas as posições desencadeiam nos registros de campo: estamos documentando o que nós pensamos deles ou o que eles pensam de si-mesmos ? Reconhecendo-se como inevitável e necessário a refiguração da fala do outro e pelo “si” do antropólogo (diretor), como produzir tal figuração a partir da interrogação do etnógrafo sobre si mesmo ? De quem é esta estória que esta sendo narrada, afinal ? Os dispositivos dramáticos levam em conta as situações do encontro etnográfico por meio das quais o etnógrafo e seus parceiros de pesquisa se representam a si-mesmos em interação e como operam suas trocas sociais diante da câmera e microfone. Os dispositivos dramáticos constituem-se das condições nas quais o diretor, o antropólogo, o etnógrafo e os protagonistas encontram-se submetidos, durante o processo de gravação, abarcando, portanto, as táticas e astúcias empregadas por ambos no jogo social do encontro etnográfico oriundos de formas diversas de pertença sociais e culturais postas em interação pelo trabalho de campo.
O roteiro de gravação
Para a realização de um documentário etnobiográfico adotamos o procedimento de criação de um roteiro de gravação, uma ação que envolve uma série complexa de incursões antes, durante e após o trabalho de campo com nossos parceiros de pesquisa e que acabam por balizar as evidências por nós registradas. Os procedimentos de escrita e reescrita do roteiro de gravação até a sua expressão final como roteiro de edição implica um cuidadoso processo do etnógrafo de montagem e remontagem, por meio de uma escrita e reescrita sistemática do roteiro de origem, no reconhecimento da voz do ou da personagem, da sua importância para a identidade ficcional da própria escrita etnográfica. A reescrita permite igualmente a descoberta e o aprofundamento progressivo dos elementos dramáticos que pulsam de forma mais forte na experiência vivida com nossos parceiros de pesquisa e que a narrativa fílmica precisa dar conta em termos das formas narrativas por ela adotada para configurar o fundo de verdade da narrativa etnobiográfica.
O encontro etnográfico é, portanto, para nós o ponto de ancoragem de aproximação com nossos interlocutores que consentiram a condição do exercício antropológico de captação da imagem e de suas narrativas por meio dos instrumentos sonoros e visuais. No caso de nossas experiências no BIEV, o começo sempre parte de um roteiro, reconhecendo-se as suas diferentes escrituras : o roteiro que projeta a condição de pré-produção de um documentário e o roteiro que se desdobra durante a sua realização (o do set de gravação). O primeiro momento é o da produção de um texto etnográfico e o segundo, seu desdobramento em material fílmico. O roteiro atua assim como um suporte técnico que torna o processo de captação da fala e da imagem do Outro como uma obra a ser desvendado.
Perspectiva crítica
Os perigos do predomínio da narrativa fílmica sobre a realidade etnográfica e as etapas de preparação da realização do documentário etnográfico condizem a uma atenção flutuante dos pesquisadores. O processo de realização do documentário abarca a reflexão crítica da intenção inicial que orientou a produção da obra, sem a presença de um momento à parte das situações de gravações, uma vez que transcorrem no interior do sufoco que significa o processo de registro audiovisual das ações do protagonistas na ordem do cotidiano, de suas falas e seus comentários. O processo de produção de uma etnografia sonora e visual é um excelente momento para a equipe de filmagem refletir sobre as hipóteses acerca da realização do documentário e das operações de registro dos fatos e acontecimentos etnografados, em diálogo com os interlocutores.
É no momento da captação das imagens durante o trabalho de campo que acontecem as decisões e as escolhas de certos detalhes, sequências de gestos e de ações que a serem registrados para o agenciamento da realidade etnográfica no plano diegético da narrativa audiovisual, e por meio da qual o fenômeno capturado em imagens (sonoras e visuais) se torna, mais tarde, compreensível aos olhos dos leitores e ouvidos dos espectadores das imagens, pela via do espaço representacional cinematográfico. O momento da captação das imagens é, portanto, decisivo em termos do domínio da estrutura da narrativa audiovisual em relação ao roteiro de gravação que está na origem da pesquisa etnográfica.
A decupagem
A decupagem traz o problema da criação de uma dispositivo propício a emergência da fala do outro uma vez que ela molda a dramaturgia do documentário, orquestrando as decisões a partir de uma ordem de presentificação das ações narradas em relação ao roteiro de origem, segundo a dramaturgia das imagens que comporão a narrativa fílmica. Imagens escolhidas segundo um olhar orientado por conceitos oriundos do campo antropológico e mediados pela linguagem fílmica : um plano aberto, um movimento de câmera que acompanha o gesto do e da personagem da ação narrada e um contra-plano de uma sala onde a interação da equipe de filmagem e protagonista acontece.
A decupagem do material reunidos (sonoro e visual) assume, assim, o lugar decisivo da descoberta da estória a ser narrada, tornando-se um momento sempre delicado. Por meio da decupagem atingimos a compreensão da intriga que orientaram as mudanças de sorte na vida do protagonista da ação segundo a composição de sequencias de ações das quais resulta a escritura fílmica em alusão a realidade interna e subjetiva que a sustenta. A decupagem intervém no sentido de conduzir o antropólogo a rever sua conduta de registro sonoro e visual em campo, suas interações com o protagonista da ação narrada e as condições de encontro etnográfico a partir das quais as imagens foram captadas.
A escrita de um roteiro esta associada a forma como se desdobram numa lógica de sucessão preestabelecida as cenas e os diálogos assim como a evolução dos cenários e as alterações dos figurinos, etc, pois é no momento da montagem propriamente dito que a operação de sua cronologia final ocorrerá. O que não foi pensando no processo de gravação não foi registrado e, portanto, não se fará presente na fase final de montagem, aparecendo como uma ausência que, por vezes, pode significar a eliminação de cenas anteriormente concebidas no roteiro original. Por ser determinante no momento do roteiro de edição, a ação de decupagem no interior do processo de elaboração do roteiro de gravação produz uma sequencia de planos mais ou menos articulados, os quais devem orientar o processo de registro sonoro e visual em campo.
As estratégias de aproximação cinematográfico com o fenômeno a ser etnografado é fundamental pois após a realização do trabalho de campo é com as imagens sonoras e visuais registradas e por suas qualidades etnográficas que poderemos refigurá-las como “documento antropológico”. As operações por meio das quais elas serão organizadas e dispostas obedecem, no caso de uma pesquisa com os jogos da memória, e no plano da etnografia da duração, um procedimento rigoroso de decupagem onde a condição de ser afetado pelas imagens é condição primeira.
A montagem
Trata-se de um instante bastante delicado da construção da narrativa etnográfica audiovisual uma vez que ela posiciona o antropólogo ou a antropóloga que dirige o projeto fílmico e portanto a equipe de pesquisadores que participou do projeto, num espaço de reflexão em torno da “autoridade etnográfica do etnógrafo” tanto quanto da autoria dos personagens interlocutores, o Outro, parceiros em seus consentimentos ao processo fílmico. Uma dupla interrogação segundo a qual se constrói uma relação entre autorias de diversos níveis que irá determinar a qualidade e a pertinência das formas de restituição da fala do Outro, em que nossos interlocutores se posicionam em suas concordâncias e discordâncias antes da circulação do produto acadêmico. Importa neste processo estarmos atentos às oposições entre os gestos de decupagem da ação a ser narrada, da gravação e da montagem e suas formas de diversas de representação do mundo, de si e do outro. A disposição dos fragmentos das ações narradas, das reações dos seus protagonistas, das indicações dos seus contextos sociais e culturais a reconstrução de um cenário de fundo comum de sentido, reunindo realizador e espectador, a montagem é um gesto de criação da narrativa etnográfica que, reintegrando tais fragmentos de sequência em sequência, permite fixar no espectador uma rítmica temporal. Importante, portanto, que nesse momento o (ou a) responsável pelo filme (direção) tenha claro para si os princípios de suas escolhas em termos da sucessão e articulação de imagens tendo em vista o propósito que deu origem ao documentário etnográfico em relação ao fluxo das falas do Outro já fixadas pelos olhos da câmera e os ouvidos do microfone.
Na edição, são comuns o reconhecimento das situações-limites do encontro etnográfico que podem provocar na direção um esforço de deslocamento/giro epistemológico em relação a si mesmo e aos seus referenciais sociais e culturais tomados como naturais. O alerta da naturalização dos processos culturais, são temas de vigilância epistemológica constante nas reuniões de equipe.
A responsabilidade na montagem coloca a direção e a equipe diante de decisões sérias quanto a devolução/restauração das imagens do Outro a uma sociedade do espetáculo e que só pode ser pensado no interior da matriz disciplinar da antropologia, ou seja, ao problema do uso da interpretação dos dados etnográficos e sua difusão nas mídias digitais e eletrônicas.
O lugar do corte na narrativa fílmica
O corte como operação técnica é responsável por estabelecer o ritmo de uma sequência de imagens no interior de um desfile de plano. O corte estabelece a fluidez de uma sequência de plano, cria seu dinamismo interno, reestabelece a duração de um plano ou de uma ação narrada. O ato de corte no bom momento, de trabalhar a duração de um plano, de procurar um olhar, um gesto através do enquadramento permite que se possa contar uma estória mais justa, mais precisa em conformidade com a trama narrativa daquilo que é narrado, atribuindo a ela uma arquitetura dramática no sentido de engajar o espectador no sentido da ação que o espaço fílmico comporta.
Em relação ao valor heurístico do corte na narrativa fílmica, o uso da montagem narrativa revela que ela é um fenômeno que vai além do efeito puro e simples de decupar uma ação narrada, ordenando-a em grandes estruturas. Ao contrário do que se pode pensar, o corte revela que a decupagem apóia-se na relevância do fragmento como princípio orientador da figuração do tempo narrativo no interior do filme. Por outro lado, a montagem por colagem, nos termos de uma montagem discursiva, na forma de uma agenciamento interno de plano dentro de certa sequencia ou através da greffe, apoia-se no princípio de associar os planos entre si sem que a coerência temporal ou lógica da ação narrada se apresente de forma manifesta. Em termos de Paul Ricoeur (1992) estamos mediante do agenciamento do tempo da narração etnobiográfica como fenômeno que esta fora da mecânica do seu encadeamento no interior de uma duração realista. Em cada um dos casos de montagem adotado estamos em pleno regime de imagens onde o controle simbólico do tempo manifesta o processo de conhecimento do mundo pela humanidade.
Nestes termos, sempre é possível que o tempo de gravação se desdobre em outras sequencias de registros tendo em vista o que foi obtido ao longo do trabalho de campo, e que será objeto de um segundo momento de roteirização que permite sempre uma aproximação progressiva com a complexidade do fenômeno etnografado, restituindo-o a partir de um jogo de imagens de múltiplas dimensões, as quais não podem ser acessadas imediatamente na primeira situação de gravação. As gravações complementares são assim elementos essenciais para compor o espaço da narração do documentário transformando-o numa imagem mais justa do da vida e/ou vidas etnografadas nos termos de sua realidade cotidiana.
A escrita fílmica se enriquece com a releitura das imagens visuais e sonoras realizadas durante a fase de produção de um documentário, longe das tomadas de decisões do “set” de gravação, e que juntos no interior de uma espaço de diegético podem nos conduzir para a descoberta da dramaturgia do filme que a montagem, finalmente, deverá perseguir.
O recurso estilístico da montagem
Na montagem o cuidado com a natureza do corte de uma cena para outra revela, por um lado, a natureza artificial do relato fílmico (e por derivação dos “filmes” etnográficos), por outro anuncia a capacidade que o corte detém de evidenciar os momentos decisivos da ação narrada pelo protagonista tanto quanto do caráter de suas experiências uma vez que através da montagem dos planos podemos aproximar fragmentos de tempo e de espaços heterogêneos, os quais reunidos configuram uma sucessão de imagens, de superposição de tempos segundo certos ritmos de encadeamentos entre elas.
A construção de sequencia de planos e seu encadeamento envolvem questões não apenas éticas mas estéticas quanto a adoção de determinado processo de ordenamento de estruturas narrativas e o agenciamento interno de certas sequencias maiores a partir das quais a intriga evolui, e onde podemos ou não adotar uma forma cronológica fechada para contar um arranjo de acontecimentos que nos foi confidenciado pelo personagem da narração, explorando-se ou não os ritmos de suas palavras, entremeado de risos e/ou de silêncios, cada um contendo um sucessão de pistas para a descoberta da pessoa do narrador.
Adentramos aqui o terreno da lógica da representação no interior da escritura fílmica. A montagem-decupagem da ação narrada desempenha um papel importante no momento em que temos que nos apoiar numa sequência articulada de planos, criando entre eles uma ilusão de continuidade, e cujo potência narrativa está sediada na transparência mimética da ação narrada a qual o conjunto dos planos alude. A articulação privilegiada de certos planos entre si, segundo o princípio de aproximação dos raccords necessários entre eles obedece a lógica do princípio de transmissão a partir do espaço fílmico propriamente dito. Por outro lado, a montagem colagem, onde a articulação de planos se apoia na ideia da descontinuidade nas relações entre os planos privilegiando-se a tensão entre eles, e segundo a escolha inteligível de planos onde o princípio maior do procedimento estético baseia-se nos efeitos de demonstração que resulta do encadeamento de planos entre si. Além destas modalidades de montagem, podemos aludir a montagem greffe, onde a articulação dos planos numa sequência se apoia na ideia da descontinuidade entre eles, porém explorando-se as suas conexões aleatórias, e onde o princípio da transmissão se apoia no efeitos de sugestão que eles provocam no espectador.
Na produção de documentários enfrentamos o problemas dos planos capturados expressarem os eventos etnográficos diversos nas quais o antropólogo e seus parceiros de pesquisa estiveram envolvidos. Como se pode restituir no processo de montagem os diversos tipos de pontos de vista que todos eles envolvem sem abrir mão da lógica da representação do espaço fílmico ?
Inicialmente, é fundamental ressaltar que a escolhas técnicas e suas possibilidades instrumentais devem respeitar as regras de situar-se em cena características do personagem da ação narrada tanto quanto das normas acordadas pelo diálogo etnográfico entre o antropólogo e seus parceiros de pesquisa. São esses os condicionantes a partir dos quais nos orientamos quanto as escalas de planos, os movimentos da câmera e do microfone tanto quanto da equipe de gravação, os jogos de iluminação, o trabalho de concepção do plano, dos ângulos, do uso ou não de filtros e/ou lentes. São eles também que nos orientam a respeito da magnitude do dispositivo de gravação que adotamos em campo.
Podemos observar esse fenômeno se pensarmos as decisões empregadas em campo quanto ao uso de certos dispositivos técnicos em detrimento de outros conforme o ponto de vista das unidades de tempos que encerram a ação narrada. Uma ação cujo registro pode durar uma única jornada, ou em inúmeros períodos durante uma mesma jornada de gravação ou abarcar muitos dias em diferentes jornadas de gravação, uma vez que nossa intensão etnográfica é captar as múltiplas ações cotidianas dos personagens da narração, os mais diversos, em diferentes territórios por onde circula (bar, esquina, praça, bairro, etc)
Conclusão
Refletir sobre os instrumentos audiovisuais, seus dispositivos nos permitem pensar as modulações de pontos de vistas que podem orientar a criação da direção de um filme de um antropólogo, um etnógrafo, da equipe de pesquisa em antropologia, cuja motivação emerge no projeto da captação de etnobiografias, como estratégico para o registro da palavra do Outro, ou seja, as formas de disposição dos suportes técnicos durante a gravação e a confrontação com as lógicas de ação no mundo.
Prelorán, Rouch e Jean Arlaud, nos ensinaram a ousar no campo da antropologia, em projetos de construção dos lugares de memória, das ações de sentido, das experiências temporais narradas e que desvendam suas formas singulares de imaginar o mundo, de figurar as múltiplas formas do viver cotidiano .
Apostamos, assim, na criação de “documentos humanos”, ou seja, etnobiografias onde as pessoas narram suas vidas para que, através de suas palavras, suas formas de vida sejam compreendidas e interpretadas. Um processo que se inaugura com a escolha dos dispositivos técnicos segundo suas possibilidades instrumentais em conjunto com os dispositivos cênicos e dramáticos que acompanham a gravação, todos os três relacionados às formas de se jogar o social que reúne o antropólogo, o etnógrafo, na direção de um filme e seus parceiros de pesquisa no interior de uma partilha do conhecimento provocado na vivência etnográfica.
A produção fílmica do BIEV é acessível na aba da produção visual do portal www.biev.ufrgs.br
Referências
ARAUJO Alberto Filipe e TEIXEIRA, Maria Cecilia Sanchez. Gilbert Durand e a pedagogia do imaginário. Letras Hoje. Porto Alegre, v. 44, n 4, p. 7-13, out/dez 2009.
ARLAUD, Jean.
BACHELARD, Gaston. La dialectique de la durée. Paris: Les Presses universitaires de France, 1963.
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