Os nós e os não-nós em tela ou sobre filmes como projeção cultural: sedução, imagem e diversidade



HIKIJI, Rose SatikoGitirana. Imagem-violência: etnografia de um cinema provocador. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.



Mílton Ribeiro da Silva Filho

Doutorando em Sociologia e Antropologia | UFPA Bolsista CAPES




  Seduzir. Verbo transitivo direto.Sinônimo de cativar, fascinar e atrair. Este verbo indica também a intenção de quem pratica tal ato, nunca desmotivado e nunca sem objetivo. Portanto, seduzir tem um propósito. E é esse o efeito que os filmes de/sobre violência causam em nós; assim como o texto de Rose Hikiji, eminente professora da FFLCH/USP, fruto de sua dissertação de mestrado – a primeira em Antropologia Visual da USP –, realizada nos idos dos anos 1990. Porém, não é só a sedução que atua sobre os espectadores de filmes de/sobre violência. Dependendo do contexto, podem surgir “náusea, medo, raiva, horror, susto, choque” (p. 15); sentimentos ora misturados, ora extremados, ora atenuados.

 

  O livro é dividido em três partes. Na primeira, denominada “Antropologia e Cinema”, a autora apresenta um primeiro capítulo explorando a ideia de mímesis, por intermédio de W. Benjamim e M. Taussig, numa lógica de compreender a segunda natureza, ou seja, “a faculdade de copiar, imitar, fazer modelos, explorar a diferença e tornar-se o Outro” (p. 26); no segundo capítulo, explora o cinema dentro da Antropologia, como produto cultural, elencando M. Mauss e R. Benedict como pioneiros na análise fílmica na disciplina; no terceiro capítulo, faz o inverso, observa a Antropologia a partir do cinema considerando, via G. Marcus, “na escrita etnográfica experimental a influência da imaginação cinematográfica” (p. 58) e seus processos similares de montagem e desmontagem. Na segunda parte, chamada de “Cinema, Sociedade, Contemporaneidade”, os leitores são apresentados ao debate sobre o lugar do cinema e C. Geertz aparece como o principal autor na argumentação da autora porque considera que a “arte teria a propriedade de sintetizar a experiência social cotidiana” (p. 72); no segundo capítulo, apresenta os “não-lugares do cinema”, numa apropriação da noção de fluxo, hibridismo e fronteira de U. Hannerz, além de apresentar a relação entre cinema e televisão e a relação entre cinema e sociedade no Brasil. Na terceira parte, “Etnografias fílmicas, Violência, Linguagem e Significado”, no primeiro capítulo, expõe o cenário atual da violência, de que forma experimentamos as cenas e/ou situações violentas; no segundo, conceitua o que chama de “imagem-violência”, em contraposição às imagens da violência ou imagens violentas, como uma dupla relação entre imagem e violência, pois para a autora “a violência nesses filmes revelava-se como linguagem, no limite, metalinguagem” (p. 104), e é neste capítulo que ela irá descrever dois dos filmes que utilizou para construir suas análises, Cães de Aluguel e PulpFiction, ambos do diretor americano Quentin Tarantino; no terceiro capítulo, aborda de que forma a literatura, especialmente a anglo-saxã, construiu aspectos da violência que ainda são representados na contemporaneidade, e estas obras ainda serviram de base para produções cinematográficas, além retratar gêneros como western e de/com gângsteres; neste capítulo, ela ainda observar como os processos de montagem e desmontagem servem para criar o enredo no cinema, a sequência e os planos-sequência servem para amarrar uma história e cativar os espectadores; o riso, neste capítulo, aparece ligado ao mito, numa proposta de desconstrução do próprio mito, ou seja, “rimos de nossos próprios medos, de certa forma, desmistificando-os” (p. 131); apresenta também A estrada perdida, de David Lynch, abordando a proximidade entre “vida normal e crime” na cinematografia do diretor; no quarto capítulo, o contexto é a reflexividade, a relação do cinema dentro do cinema, da arte dentro da arte, de olhar para si mesmos, “como se fossem capazes de se auto-observar” (p. 154). Nas suas considerações finais, a autora sintetiza a analise observando que as obras abordadas no livro, quando encaradasmetaliguisticamente, refletem sobre a produção cinematográfica, midiática e da violência.

 

  A ligação entre Antropologia, como disciplina científica, e visualidades (para condensar as formas comunicacionais via imagem) é antiga. Diria que são filhas da mesma matriz reflexiva, pois ambas pretendem enxergar e interpretar o mundo a sua volta, os códigos culturais tão caros para os antropólogos e diretores que padecem de um momento de “decifração” da cultura, do “outro”, dos símbolos e signos, que faz com que o cinema seja um campo fértil de análise antropológica, pois pretende redescobrir “o cotidiano, com seus gestos, costumes e valores” (p. 32).

 

  De acordo com Hikiji, os primeiros filmes cuja temática era o “outro”, ou seu exotismo, datam de 1897, porém não tinham a pretensão de fazer uma etnografiadas diferenças culturais. No entanto, em 1898, defato, aparecem as primeiras experiências etnográficas filmadas; mas 1901 é o ano em que o mercado cinematográfico e a Antropologia acadêmica se encontram.

 

  A análise dos filmes ou de como eles podem reproduzir aspectos culturais já está presente no seminal texto de Marcel Mauss sobre as técnicas corporais de suas enfermeiras e o quanto ele percebe a influência da cultura norte-americana no andar das moças francesas. Uma pena que sua “revelação” não tenha tido grandes ressonâncias àquela época, idos de 1934, ano de sua apresentação na Société de Psychologie.

 

  Assim, cinema e produção fílmica antropológica aparecem atrelados ao poder, ou mais precisamente, ao exercício de força dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, como evidencia a autora nas passagens sobre R. Benedict e M.Mead, ambas ligadas ao Columbia UniversityResarch in ContemporanyCultures, que produziu trabalhos na área de antropologia visual tendo como principal referência a escola histórico-cultural norte-americana, ou sua vertente conhecida como cultura e personalidade.

 

  Há uma aproximação entre os estudos de filmes e a antropologia através da analogia em natureza e significância cultural dos filmes ficcionais, mitos e ritos que representariam a mesma coisa “aqui” (sociedade contemporânea) e “lá” (sociedade primitiva). Para isso, a autora encontra em G. Bateson um interlocutor provável, pois este abriu a possibilidade do filme ser pensado como mito quando afirma encontrar a construção coletiva, o apelo popular e a dimensão representacional da sociedade que tanto os filmes quantos os mitos teriam. E da mesma forma que acontece com o mito, o filme serve, nas suas diversas exibições, para fixar as representações coletivas, construídas na história, enredo, trama.

 

  A partir de G. Bateson, mas também de S. Kracauer, E. Morin, M. Ferro dentre outros, Rose Hikiji acaba evidenciando que o filme também acaba sendo incorporado como material etnográfico e histórico. Não à toa porque lida diretamente com os sistemas de representações coletivas, mas porque também ajudam a interpretar as culturas, tanto a dos “outros” quanto as “nossas” – neste caso, apontando especialmente para a figura do antropólogo que quase cotidianamente lida com a diferença, nos aspectos mais gerais, e tem que obrigatoriamente criar/elaborar mecanismos de relativização para exercer de maneira ética sua profissão e a ideologia profissional.

 

  No movimento que leva a antropólogos e historiadores a tomar o filme como elemento da cultura e, portanto, embriagados pelos sistemas simbólicos e práticos da existência coletiva, a autora situa a metodologia como a principal articuladora na interpretação dos códigos culturais presentes nas películas. Neste caso, a etnografia, por sua peculiaridade, acaba sendo de grande valia, pois ajuda no entendimento do conteúdo simbólico apresentado no jogo de luz e sombra (efeito produzido pelo diretor de fotografia), ou nas vestimentas e figurinos das personagens (que cabe ao figurinista e diretor de arte), ou no cenário (cenógrafos e cenotéctnica são os responsáveis), ou na própria marcação e construção das personagens (este feito cabendo ao diretor, roteirista e atores realizar).Estes efeitos são criados dentro das culturas e são reproduzidos nos sets de filmagen, pois como analisa Hikiji, a partir de M. Ferro, os filmes são montagens, truques e trucagens assim como os mitos, as representações coletivas, a sociedade.

 

  A partir dessa reflexão é possível explorar a diferença e a singularidade da diversidade cultural parte capital deste livro. Um exemplo pode ser encontrado na crítica à própria noção de centralidade cultural, neste caso das potências que, como os EUA, utilizam da dominação cultural para subalternizarem as naçõesdo sul global, ou como diria Rose Hikiji, à luz de C. Geertz, numa desconstrução da “clareza ocidental” (p. 36). Assim, criando um outro “nós” e um diverso “não-nós”. A autora ainda explora a diferença e a diversidade cultural quando compara as cerimônias pueblo aos nazistas e constrói com isso  uma crítica à própria centralidade cultural, neste caso, a dos EUA na II GM.

 

  A descrição interpretativa dos filmes nos permite enxerga-los, assisti-los, sem nunca ao menos termos vistos. Isso atiça nossa curiosidade sobre o filme. Vê-los ou revê-los dá a dimensão da análise de Hikiji, ela nos incomoda, nos atiça a querer saber que cinema é esse que foi feito e quais são seus impactos nos filmes que se seguirão. Lembrando que isso pode (e deve), haja vista o trabalho original ser dos anos 1990. E muito ter sido feito em torno da temática. Mas para alguns, estas páginas serão como spoilers dos filmes, exatamente para aqueles que nunca assistiram.

 

  A entrada de filmes estrangeiros, principalmente estadunidenses, causa na autora uma preocupação pelo fato do cinema representar uma reelaboração da vida social, ou como produto das representações coletivas, e por isso nos faz pensar nas representações que atravessam os filmes, numa dinâmica onde as “paixões elementares” ganham força e visibilidade – como o conflito entre o bem e o mal – e os heróis são mitificados e apresentados como representantes de modelos de “sucesso, trabalho, família” (p. 83).

 

  O cotidiano da violência, a banalidade do ato violento ou as imagens e os discursos sobre a violência, mesmo quando ausentes de visualmente, são retratados através do discurso, da fala das personagens, da narrativa que são exploradas de diversas formas: desde a discussão sobre hambúrgueres, em PulpFiction, até o sofrimento de Mr. Orange pelas mortes de policiais e de uma civil, em Cães de Aluguel – pode-se fazer alusão à ideia de banalidade do mal, de H. Arendt.

 

  A obra tem o mérito de, além de ser o primeiro texto da USP em Antropologia Visual, é o relato de uma experiência etnográfica que esteve interessada em dialogar diretamente com o cinema. A visão da autora o tempo todo dialoga com uma perspectiva reflexiva, seja na forma de abordar a violência, como efeito e processo cultural, construindo a partir de uma estrutura específica, influenciada pela ocidentalidade; seja percebendo o contexto de produção, a metalinguagem, os truques de edição e os processos de montagem e desmontagem dos filmes, da narrativa. A violência presente nos filmes nos faz rir, chorar, se horrorizar. Apenas retrata a barbárie da vida cotidiana. Apenas nos faz pensar nas imagens-violência como linguagem, uma linguagem aprendida e ensinada, parte do nosso sistema de representações, de quem somos e de quem não-somos.

 

 

  Referências

 

  ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

 





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